São Paulo, quinta-feira, 30 de janeiro de 1997
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Lembrança de Callado

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Chegava à redação aí pelas cinco da tarde. Naquele dia, desconfiando de que alguma coisa estava errada comigo, cheguei mais cedo. O Antero, contínuo imemorial do "Correio da Manhã", foi logo me avisando: "Sua crônica de hoje deu bode, a diretoria está reunida, estão pressionando o Callado!"
Eu sabia que a gerência negociava minha cabeça. Até aí, tudo bem. Mas logo suspeitei que a pretexto da punição -que eu merecia- outras punições estavam a caminho, para amaciar o jornal na oposição ao regime militar.
Escrevi um curto bilhete ao Callado, que estava lá em cima, no quinto andar. Pedia demissão, achando que assim esvaziava uma crise entre a redação e a gerência. Antes de mandar o bilhete pelo mesmo Antero, mostrei-o a amigos: Moniz Vianna, José Lino Grünewald, Otto Maria Carpeaux, Armando Miceli.
Peguei o boné e o carro, me mandei para Ouro Preto, estava em meio de um romance e queria terminá-lo logo. Callado me descobriu no hotel. "Olha, eu entreguei o seu pedido de demissão, mas também apresentei o meu".
Nelson Werneck Sodré relata o episódio em sua "História da Imprensa no Brasil". Não vem ao caso lembrar as razões do jornal e as minhas. O boicote econômico ao "Correio da Manhã" era total.
O novo gerente -um velho playboy que não era de nada- achava que me cortando a crônica, e mais tarde a de outros colegas, teria condições de melhorar o faturamento.
Era possível. Mas para mim era impossível engolir o que havia escrito. Só não esperava a atitude de Callado. Nem foi por amizade pessoal, muito menos por charme profissional. Ele tinha um senso de dignidade que o marcou fundamente na imprensa de seu tempo.
Ontem, na Ilustrada, lembrei a nossa prisão na porta do Hotel Glória. Hoje, lembro um episódio que me parece raro em qualquer profissão. Ao perder Callado, perco muito de mim mesmo.

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