São Paulo, sexta-feira, 3 de outubro de 1997
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Patrick McCabe mostra horror incrustado em conto de fadas

CASSIANO ELEK MACHADO
DA REDAÇÃO

Imagine Branca de Neve brincando com os sete anões no meio de um bosque. Corte para Dunga. De trás de uma árvore frondosa, o anão faceiro tira um tacape cheio de espinhos. Sem parar de saltitar, ele se aproxima da donzela nevada e crava o bastão de madeira em sua cabeça.
"Nó na Garganta", romance de Patrick McCabe que a Geração Editorial lança este mês em São Paulo, não é grotesco como a cena descrita. A obra premiada do escritor irlandês não se passa em um bosque nem reúne anões no elenco.
Mas o efeito do texto contundente de McCabe é parecido.
"Nó na Garganta", que no original se chama "The Butcher Boy" -algo como "O Garoto Açougueiro"-, é livro que descasca horror de um conto de fadas -ou vice-versa.
Francie Brady era um garoto que gostava de cutucar o gelo que se formava em uma poça na rua, que admirava John Wayne e gibis de heróis.
Mas, em poucos lances, tudo o que era sólido para Brady se desmanchou no ar.
A mãe enlouqueceu e se matou, o pai se afundou em sua viagem submarina pelo álcool e seu melhor amigo se afastou.
É o próprio Francie Brady quem conta, de dentro de um hospício, com algumas décadas nas costas, sua história em "Nó na Garganta".
E o personagem/narrador não tem amarras na goela, como pode sugerir o título em português -criado para o filme que Neil "Traídos Pelo Desejo" Jordan está finalizando baseado no livro.
Pelo contrário. As 242 páginas do livro são um jorro contínuo de texto. Quase não há capítulos, parágrafos e sinais de pontuação -em especial, vírgulas.
A viagem de Francie Brady ao coração da escuridão começa de maneira prosaica. Contente com a vida simbiótica que levava ao lado do melhor, super, extra amigo Joe Purcell, Brady assiste à professora anunciar um novo coleguinha na classe.
Diretamente de uma escola particular de Londres, chegava com blazer de brasão dourado no bolso, boné azul-marinho, broche e meias cinzas Philip Nugent.
Seria o pimpolho uma ameaça de democratização das relações Brady/Purcell?
Brady resolve invadir a casa do almofadinha -em sua ausência- e sai com uma pilha de histórias em quadrinhos sem nenhuma orelha nos cantos das páginas.
Carregando um furacão nas costas, a sra. Nugent encara a sra. Brady e ataca com um dos únicos assuntos intoleráveis para um irlandês. Ela compara os Brady aos porcos -velha ofensiva dos ingleses e norte-americanos. A imagem dos suínos passa a preencher cada neurônio saudável dos Brady.
Mamãe Porca, por exemplo, acaba sendo levada para a "garagem" -modo como Francie se referia aos manicômios- cantando a música "Aprendiz de Carniceiro".
Francie resolve fazer nova invasão na casa de Philip Nugent (trechos reproduzidos nas páginas anteriores) e simula uma explosiva "aula para porcos" -mais tarde ele volta à casa para performance mais contundente, incluindo humanos e pistola de abater porcos.
Abertas as porteiras do chiqueiro, Francie passa a se erguer e afundar na lama. Passa por um internato em que é bolinado por um dos padres. Sai da instituição e consegue emprego, carregando carroça de lavagem para um açougueiro -e matando porcos. Depois de uma rápida passagem por um manicômio, ele parecia "recuperado". Até que "Dunga" crava o "tacape" em "Branca de Neve" -apenas para manter um pouco de suspense.
Depois do assassinato, Francie Brady volta a um manicômio. Cercado de "caipiras com bundas ossudas", que ele tanto desprezara, "Francis Bacon" chega finalmente ao que procurava. Ao lado de outro "interno", redescobre a alegria de cutucar o gelo com um graveto e brincar de coisas como "o que você faria se ganhasse um milhão de bilhão de trilhão de dólares?".
Ele encontrara o tempo perdido.

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