São Paulo, sábado, 4 de outubro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Brasil finalmente descobre J.J. Saer

AUGUSTO MASSI
ESPECIAL PARA A FOLHA

O escritor argentino Juan José Saer, filho de imigrantes sírios, nasceu em Serodino, em 1937. Parte significativa de sua formação intelectual, entre 1956 e 1962, ocorreu em Santa Fé e Rosário, onde conviveu com um grupo de escritores, músicos e pintores, dentre os quais, o poeta Juan L. Ortiz.
Os contos de "En la zona" (1960) deram início a uma trajetória literária fecunda e diversificada -romances, poemas, ensaios e contos-, cujo último título, "Las Nubes", acaba ser entregue ao seu editor, em Buenos Aires.
Saer vive na França desde 1968 e atualmente leciona literatura na Universidade de Rennes. De passagem por São Paulo, o escritor falou a Folha sobre "Ninguém, Nada, Nunca", sua primeira obra lançada no Brasil, pela Companhia das Letras.
*
LIMITES - "Eu sempre procuro trabalhar com margens estreitas de espaço, tempo, linguagem e, inclusive, temas, caso da sexualidade presente em "Ninguém, Nada, Nunca" como um ato que nunca encontra satisfação, um recomeçar infinito.
A própria atmosfera semântica do romance está circunscrita à palavra cavalo que, além de designar os animais assassinados, é um nome bastante comum na Argentina. No livro, corresponde ao delegado que também é assassinado."

TRILOGIA DO TEMPO - "'Cicatrices' (1969) está estruturado segundo uma concepção de tempo circular; 'El Limoneiro Real' (1974) obedece a um continuum que vai se expandindo e incorporando novos elementos; 'Ninguém, Nada, Nunca' (1980) trabalha com a idéia de tempo descontínuo. Do ponto de vista formal, eles constituem uma trilogia."

MOTIVAÇÃO - "Quando eu era jovem, um amigo escritor disse que gostaria de escrever um romance a partir de fragmentos. Aquilo me marcou muito. Passado alguns anos, recordei-lhe a idéia, e ele respondeu: 'Eu disse isso? Não sei onde estava com a cabeça'. Então, resolvi que iria escrever 'Ninguém, Nada, Nunca'."

BORGES - "Minha dívida com Borges é grande. Tenho uma profunda admiração por sua obra e realizei um grande esforço para que essa admiração não me impedisse de levar adiante uma obra pessoal."

RECONHECIMENTO - "Dentro da minha estratégia de escritor, nunca quis viver de literatura. Trabalho como professor, e isso me permitiu escrever o que realmente desejava. A paisagem literária é continuamente transformada pela erosão dos antigos modelos e pelo aparecimento de novas idéias. Uma literatura inovadora necessita de tempo para ser percebida e, em segundo lugar, para ser aceita. O juízo dos leitores será sempre formado pelo gosto da geração anterior."

GUIMARÃES ROSA - "Se menciono Guimarães Rosa, faço sem qualquer demagogia do tipo 'já que estou no país, seria bom elogiar algum escritor brasileiro'.
Confesso que em toda minha vida adulta roubei uma única vez. Estava na casa de uns amigos e vi um exemplar de 'Primeiras Estórias'. Nem haviam aberto o livro. No fundo, não o mereciam.
O 'Grande Sertão' é uma epopéia fabulosa. Qual o lugar que ocupa dentro da cultura brasileira? Só posso aceitar que ocupe um lugar central. Apesar de não ter obtido muita repercussão na França, trata-se de uma das principais obras do século 20."

REALISMO - "Há tanto realismo quanto indivíduos. O que chamamos de realismo é uma convenção aceita a cada instante, que fazemos entre nós. Cada um de nós faz concessões para aceitar uma realidade média comum.
O que eu faço poderia se definir como realismo por uma única razão: não emprego nenhum dos tópicos da literatura fantástica. Isso não significa que não gosto da literatura fantástica, admiro Cortázar, Borges, Quiroga."

ESTRUTURA - "Certas histórias exigem determinados procedimentos literários. Em 'Ninguém, Nada, Nunca', narro a percepção do presente. A dificuldade está justamente na impossibilidade lógica de viver e, simultaneamente, descrever o momento vivido.
Julguei que a estrutura narrativa mais adequada seria compor o livro por meio de vários fragmentos narrativos, sugerindo que o presente seria uma síntese desses momentos de descontinuidade. Mas o aspecto formal não é a única motivação da história, penso que ela tem uma carnadura trágica e existencial."

PERSONAGENS - "O reaparecimento de antigos personagens em novas histórias é importante para criar uma ilusão de realidade. É um tópico do realismo. Os personagens acusam uma evolução do universo do autor. Normalmente, tomamos uma obra como algo acabado, e o reaparecimento de personagens produz a sensação de que a experiência do escritor ainda não está finalizada.
Meus personagens principais só aparecem uma única vez, já os secundários podem reaparecer como principais em uma outra história. Esse é o caso de Pichón, o irmão de Gato em 'Ninguém, Nada, Nunca', que reaparece nas minhas duas últimas obras, 'Glosa' e 'La Pesquisa'."

DRUMMOND - "Drummond teve muita influência sobre a poesia argentina, em especial, a da minha geração. Sei de cor alguns de seus poemas. Apesar de não saber falar português, o pouco que sei aprendi com os poetas brasileiros, entre eles, João Cabral e Murilo Mendes."

POLICIAL - "'La Pesquisa' foi o último romance que publiquei na Argentina. Sempre tive um desejo, quase infantil, de escrever um romance policial. Mas confesso que havia algum escrúpulo da minha parte, era como tirar o uniforme de escritor sério.
A trama está baseada num serial killer que realmente existiu e matou, em Paris, mais de 27 velhinhas. De repente, dei-me conta de que, de alguma forma, já havia escrito essa história. Em "Ninguém, Nada, Nunca", também havia uma espécie de serial killer, só que ele matava cavalos. Curiosamente, retornei ao mesmo tema."

Livro: Ninguém, Nada, Nunca
Autor: Juan José Saer
Lançamento: Companhia das Letras
Quanto: R$ 22 (232 págs.)

Texto Anterior: Para livro, "Um dia a gente chega"
Próximo Texto: Escritor é expoente argentino
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.