São Paulo, domingo, 5 de outubro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Um personagem de sua própria ficção

BERNARDO CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O nome de Sigismund Krzyzanowski não consta dos dicionários de literatura. O fato em si não seria de grande relevância se na própria orelha da edição brasileira de seu livro de contos "O Marcador de Páginas" não se fizesse menção ao aspecto borgiano da biografia desse escritor russo (apesar do nome polonês) que viveu provavelmente entre o final do século passado e meados deste, na União Soviética, sem que grande coisa se saiba dele, a não ser que não publicou quase nada em vida.
Como se pode deduzir a partir dos exemplos, o autor é tão representativo do que se convencionou associar a um humor eslavo, a uma literatura típica da Europa do Leste, com todo o seu arsenal de situações absurdas servindo de metáforas sociais, que por vezes tem-se a impressão, reforçada pela ausência de informações e pela sombra que paira sobre sua biografia, de que talvez ele nunca tenha existido, mas seja uma paródia do "típico escritor do Leste", criada por alguma alma espirituosa. De qualquer jeito, é difícil não conceder à imaginação que deu origem a esses contos a sua parte de humor genial, tanto mais se o próprio autor também for uma invenção -e, no caso, é bom lembrar que, já pelo aspecto metalinguístico e auto-reflexivo dessa prosa, ele se insere com frequência como um personagem de sua própria ficção.
Uma certa atmosfera kafkiana dá o compasso a todos os contos, só que associada a uma visão tipicamente soviética, como se George Orwell tivesse escrito o pesadelo totalitário do seu "1984" para morrer de rir. Em "O Quadraturin", é esse produto milagroso que faz os espaços internos do apartamento do protagonista aumentarem despropositada e assimetricamente (graças à falta de uniformidade com que foi aplicado nas paredes) que termina por tornar sua vida impossível, sobretudo na tentativa de esconder o fenômeno dos que batem à sua porta, a começar pelo inspetor da Comissão de Moradia, que controla a distribuição dos espaços.
Já nesse primeiro conto, o texto de Krzyzanowski exala, metaforicamente, uma idéia da literatura como saída para uma vida confinada a um espaço exíguo (não apenas o quarto de oito metros quadrados em que vive o herói, mas o mundo autoritário em que circula o próprio escritor), o que se confirma nos contos que se seguem. Em "O Marcador de Páginas", que dá título ao volume, um homem sentado num banco de praça toma tudo o que passa à sua frente, de objetos inanimados a animais, como pretexto e ponto de partida para uma infinidade de histórias, um fermento para sua imaginação, e com isso vai discutindo o próprio estado impotente da literatura que o cerca.
O humor chega ao ápice em "O Carvão Amarelo", de 1939, em que um cientista propõe que se use a bílis do fígado humano, produto da raiva, como fonte de energia em época de crise. As consequências dessa proposta são, pelo menos para o leitor, de gargalhar. O Estado passa a usar de todos os meios possíveis para provocar mais e mais ódio na população; surgem dissidentes denominados "cordialistas"; as indústrias passam a prescindir de operários, precisando agora apenas do ódio dos demitidos e de seus protestos etc.
Como o "caçador de temas" sentado no banco de praça de "O Marcador de Páginas", a contar histórias a partir do que vê, Krzyzanowski cultiva a imaginação até as raias do bom senso, criando situações absurdamente cômicas e reinterpretando a vida cotidiana pela ótica de uma inteligência igualmente criativa.
É assim que, em "Dentro da Pupila", nem uma história de amor é poupada da ironia cáustica do narrador, que se vê como um homenzinho prisioneiro no reflexo dos olhos da amada e embarca, a partir daí, num pesadelo paranóico em que, junto com os amantes anteriores da mulher, também prisioneiros de sua pupila, tenta escapar de todo jeito para fora do globo ocular dela.
Krzyzanowski reorganiza a vida (do trabalho e da economia ao ciúme e à razão) por meio do filtro hilariante das suas fantasias, o que não deixa de ser um tipo de subversão. Pelo menos num mundo onde, tal como imagina o autor no conto "O Carvão Amarelo", sorrir em público é considerado um atentado ao pudor e à ordem.

Texto Anterior: As estratégias do cortesão
Próximo Texto: Uma chance de competitividade
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.