São Paulo, terça-feira, 7 de outubro de 1997
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Está na hora da nova etapa da Lei do Audiovisual

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Sonia Braga vem no avião com Bill Clinton, disseram-me. Que tem isso demais? Nada. Mas é interessante. São os EUA fazendo uma antropofagia ao contrário, uma política da boa vizinhança de cima para baixo. É supersimpático, e nós, tapuias, acharemos o máximo.
Esse gesto diplomático é uma ficção, como um filme americano dos anos 30, o tempo em que Carmen Miranda subiu do getulismo ao capitalismo para iluminar a depressão americana pós-"crash" e garantir a importação de seus produtos por nós.
Volta no avião do presidente é uma "prova" de que teríamos "conquistado" um pouco a América, de que nossos produtos costumam penetrar em seu rico mercado. É a antimiçanga, o antiespelhinho.
Sonia foi um dos raros orgulhos de nossa cultura que entraram no cinema deles, a duras penas (eu sei o que Sonia penou para escapar dos papéis de empregadinha porto-riquenha, como Rita Moreno, que acabou fazendo sexo oral em Jack Nicholson em "Ânsia de Amar"). A verdade é que não temos nenhum intercâmbio cultural com os EUA. Nada -mal sabem quem somos.
Eu sou um pobre homem do "cinema novo". No entanto, minhas pequenas experiências comerciais com Hollywood me deram a visão em miniatura do que está acontecendo em setores mais importantes da economia.
Quando fui vender meus filmes nos EUA (e lá só consegui colocar "Toda Nudez Será Castigada", num circuito menor -na época, eu não tinha dinheiro nem para telefonar-, e "Eu te Amo", que entrou em circuito no país inteiro e ajudou a lançar a Sonia), vi de perto que a pior forma de desamparo é negociar com americano. Eles não nos dão a esmola de um "jeitinho", uma cordialidade.
Diante de um negociante americano, sinto-me abstrato. Ele é real, você imaginário. Você tem a vaga esperança de uma piedade, mas não vem nem um cafezinho. Eles não lhe dão nada, e você ainda sai com uma gratidão humilhante, por ter sido mal pago para entrar no baile deles.
Talvez a grande invenção americana seja o curto prazo. Não existe o raciocínio flexível, de longo prazo, no comércio conosco, os emergentes. Não existe a idéia de "reflorestar-nos", de nos fecundar, de ajudar a nos desenvolver nem que seja para terem bons fregueses no futuro.
Falo essas obviedades por causa do cinema. Todo mundo fala hoje no Brasil: "Ahhh... Agora o nosso cinema está renascendo...". Isso me dá um calafrio, pois vejo que os filmes brasileiros estão sendo produzidos de novo, graças a incentivos fiscais, mas estão sendo jogados no gueto dos cinemas de arte ou tirados de cartaz em plena carreira bem-sucedida, porque não temos uma política de distribuição e de proteção para esses filmes.
É como produzir pães sem padaria, televisão sem aparelhos receptores. Nos anos 70, quando, por um desses mistérios brasileiros, tínhamos a lei de proteção ao mercado interno, uma cota de tela, chegamos a fazer 12 milhões de espectadores em filmes como "Dona Flor".
Mas por que esse ardor nacionalista? Porque li uma entrevista do Jacques Le Goff (um dos maiores historiadores do mundo) em que ele diz: "Não sou protecionista, com exceção do âmbito do cinema. O cinema é um dos pontos fortes da civilização européia, e é preciso defender a cota de tela do cinema europeu".
O cinema americano acabou com o cinema alemão, o italiano, o espanhol, ficando o cinema francês na corda bamba. Claro que não dá mais para uma política de substituição de importações getulistas hoje, mas não dá também para o governo achar que a tarefa está pronta com a Lei do Audiovisual. A lei é ótima, mas falta o resto, e o resto é que é difícil. Como o Plano Real: difíceis são as reformas complementares.
Há soluções possíveis. Na Espanha, a cada três filmes americanos dublados eles são obrigados a co-produzir um filme espanhol. Temos de arranjar novos métodos. Não dá para ver filmes bons como "Os Matadores" ou "Céu de Estrelas" ou "O Que É Isso, Companheiro?" saírem de cartaz, sem pagar as cópias.
Globalização da economia vira um lero-lero se não houver mão dupla. Querem um exemplo espantoso? Há uma lei de cinema no Brasil que permite que as companhias estrangeiras de filmes (Fox, Warner, UIP etc.) apliquem parte de seu Imposto de Renda devido ao Estado na co-produção em sociedade com filmes brasileiros. Qualquer louco preferiria investir num filme em vez de pagar imposto ao fisco.
Lutamos anos, ingenuamente, para conseguir isso, estimulando a "cooperação comercial". Sabem o que aconteceu? Os americanos preferem perder o favor fiscal (cerca de R$ 50 milhões por ano) do que aplicar dinheiro (gratuito) em filmes brasileiros.
Claro que seus advogados dizem que há um problema com a Receita americana, que perderiam um "tax credit" e coisa e tal... Mas não é nada disso. Não aplicam para não estimular concorrentes brasileiros. (A única companhia que aplica é a Columbia, que tem um passado mais cooperativo.)
Imaginem no aço, nas grandes transações. "Globalization, my ass" (Globalização uma porra"), como eles dizem. "Ahhh... Porque seria bom para nós a longo prazo, uma cooperação cultural bilateral", pensam os babacas. Americano não acredita nesse papo de fortalecer emergente; vejam nossas laranjas, sapatos, ferro. Vejam aquela senhora Charlene Barschefsky: "O Mercosul é contra nossos interesses".
Clinton vem aí com um papo de "integração pela educação e cultura", para vender à Alca, mas isso não pode nos iludir. O cinema para eles sempre foi uma vanguarda militar para colocar produtos. Vejam que os personagens principais dos filmes americanos são os objetos de cena, são os produtos da tecnologia de ponta. Já foram os automóveis, os jeans, hoje são os computadores e seus geniais painéis mágicos. O enredo é apenas um pretexto para vender mercadorias.
Há uma coisa importantíssima que temos de deixar clara: o governo brasileiro não pode achar que fez a Lei do Audiovisual apenas para agradar aos cineastas. A Lei do Audiovisual é uma necessidade pública, uma prioridade brasileira e tem de ser complementada pela criação de mecanismos que garantam a exibição de nossos filmes, que não garantam privilégios, mas sim condições mínimas de concorrência com os "rambos".
Chegou a hora da segunda etapa da Lei do Audiovisual: distribuição, distribuição! Atenção, ministro Weffort, atenção, presidente: vamos proteger a exibição de nossos produtos pelo menos em nosso mercado. Se bobearmos, vamos permitir que sob o papo careca de "globalização e abertura" só exista o imperialismo velho de guerra.
A visita de Clinton vai tentar dourar a pílula da Alca com charmes culturais. Não bobeemos. Cuidado com a operação Carmen Miranda. Do contrário, continuaremos a viver de ilusão, como quer o cinema americano.

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