São Paulo, domingo, 12 de outubro de 1997
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Casa Branca é estrela após Guerra Fria

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Faz sentido que a Presidência dos EUA, como instituição, tenha se tornado um pólo de atenção do cinema no exato momento em que seu papel, na política internacional, tornou-se paradoxal: ele é ao mesmo tempo pleno e vazio.
Pleno porque, nos anos 90, os EUA se consolidam como nação hegemônica incontestável. E vazio porque, vencida a Guerra Fria, a figura do presidente se esmaece, enquanto o valor simbólico da Presidência cresce na mesma proporção.
Já não estamos em 1915, quando o assassinato de Lincoln era um momento privilegiado de "O Nascimento de uma Nação", em que D.W. Griffith discutia a importância de Lincoln e de suas idéias para o reencontro entre o Sul e o Norte, após a Guerra de Secessão.
Não estamos nos anos 60, quando Stanley Kubrick fez intervir um presidente na comédia "Dr. Fantástico", para ser o elemento de equilíbrio entre militares ensandecidos, dispostos a provocar uma guerra nuclear a qualquer custo e cientistas com pendores nazistas, sem contar os soviéticos propriamente ditos. O presidente existia, em suma.
Desde a era Reagan (1981-1989), realidade e ficção começaram a se indiferenciar de forma um tanto assustadora nos EUA.
Reagan foi o ator-presidente, evidenciando que a imagem começava a interferir na vida real, como se os EUA (e o mundo) estivessem se tornando a extensão de um filme. A Casa Branca tornou-se capital da explosão de aparências que culminaria na Guerra do Golfo: a "guerra limpa" transmitida ao vivo, onde as bombas supostamente não matavam ninguém.
Terminado o filme da Guerra Fria, entramos com força no reinado da indiferenciação. Nos anos 90, "Forrest Gump" fez Kennedy, Nixon etc. conviverem com Tom Hanks no mesmo tempo e espaço, graças a suas trucagens realistas. Com o tempo, fica mais nítida a natureza desse realismo. Não eram os presidentes que conviviam com Forrest Gump, e sim aparências, imagens.
Qual a diferença, a rigor? Os anos 90 querem uma imagem, mesmo que sem substância. A imagem será sua própria substância. A Presidência passará a ocupar um lugar incomum no imaginário norte-americano, mas tem-se a impressão de que o presidente pode (a rigor: deve) ser qualquer um.
No paradigmático "Independence Day", por exemplo, a cena mais impressionante é, de longe, a do bombardeio da Casa Branca -reduto do poder terráqueo- pelos alienígenas. Todo mundo lembra. Mas quem era mesmo o presidente? Qualquer um.
Já em "Força Aérea Um" o presidente não é um qualquer. É Harrison Ford. Apesar disso (ou justamente por isso), o filme promove o esvaziamento completo do presidente em favor da imagem presidencial.
O presidente é banalizado -sua ficção será a de um pai que tem a família sequestrada, nada mais. Este presidente é um homem comum -nada a ver com Lincoln ou Franklin Roosevelt-, não tem idéias distintivas.
Não é um líder, mas um banal espelho da sociedade. Chamado a demonstrar seu patriotismo, na hora difícil, tudo o que tem a oferecer são lugares comuns: proteger a família, não trair a pátria, provar seu heroísmo.
"Força Aérea Um" é o retrato acabado de uma situação que começa com a morte de Franklin Roosevelt e a "caça às bruxas", e se consolida após a superação do trauma do Vietnã: a América e a Casa Branca estão sempre certas. Cabe ao presidente representar o papel de homem comum que as circunstâncias levaram ao topo.
A rigor, não é outra a imagem que elegeu e reelegeu Clinton: a do homem qualquer, vazio, ungido pela plenitude de um poder que se define pleonasticamente: poder é o poder de poder.
A América pós-Guerra Fria tem mesmo esse "poder absoluto" de que fala o novo filme de Clint Eastwood, mas já começa a delirar.

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