São Paulo, domingo, 12 de outubro de 1997
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Um universo recomposto

Clássico da interpretação de Baudelaire é lançado no país

JOSÉ MARCOS MACEDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Numa das páginas do "Itinerário de Pasárgada", Manuel Bandeira, ao recordar os rumos de sua experiência poética, relata a humilde insatisfação de notar que, em repúdio a todo esforço, o poema só lhe saía em rompantes de emoção súbita, numa espécie de transe ou alumbramento. A consciência de que era "poeta menor", movido a golpes de instantes propícios, somou-se também à descoberta, ainda antes de conhecer a lição de Mallarmé, de que "em literatura a poesia está nas palavras, se faz com palavras e não com idéias e sentimentos, muito embora (...) seja pela força do sentimento ou pela tensão do espírito que acodem ao poeta as combinações de palavras onde há carga de poesia".
Curiosamente, este embrião de arte poética é idêntico ao que serve e base a "De Baudelaire ao Surrealismo", de Marcel Raymond.
Longe de ser um compêndio marginalmente comentado dos últimos 50 anos de poesia na França, o livro não terá sido o melhor, mas talvez o primeiro a retraçar com minucioso zelo, e no calor da hora (a primeira edição é de 1933), a linha evolutiva que filia o Romantismo, por via do Simbolismo, aos modernos -uma genealogia que fará carreira na crítica, basta pensar no Octavio Paz de "Os Filhos do Barro", que traz o subtítulo "Do Romantismo à Vanguarda".
Com duas ou três observações introdutórias, o autor abre o compasso a que se circunscreverá sua análise.
É comum considerar, e Raymond também considera, "As Flores do Mal" como divisor de águas de que partem duas linhagens bifurcadas, a dos "artistas", cujos patriarcas são Baudelaire, Valéry e Mallarmé, e a dos "videntes", que iria de Baudelaire a Apollinaire, passando por Rimbaud. É neste movimento pendular, em sintonia com as mínimas variantes e deturpações exageradas entre um e ouro pólo -de um lado o classicismo conservador de Maurras e Moréas, de outro o fulgor passageiro do fogo de palha surrealista- que o crítico faz corpo com a poesia que interpreta, cujos princípios, por sua vez, lhe servem de base à avaliação da obra de que ele toma os fundamentos, numa contaminação recíproca de parâmetros.
Com efeito, um dos pressupostos básicos desta última é fechar-se ao mundo para, a partir do eu, recompor o universo, sem no entanto abrir mão da linguagem que se aperfeiçoa na forma perfeita e acabada do poema, a duras penas conquistada -e com isso voltamos ao dilema exposto por Bandeira. Ao eleger como objetivo raspar o verniz da aparência hipócrita, os poetas modernos fazem da poesia uma ação vital e encarregam a imaginação de compor um retrato metafórico de si mesmos, apagando as fronteiras entre o sentimento subjetivo e objetivo, embora por esse próprio motivo não possam descurar da forma poética, das estruturas por meio das quais, exclusivamente, tem curso a integridade da sensação.
Fiel à tradição baudelairiana, com um pé no ocultismo, outro em Poe, o poeta deve deixar-se visitar por uma sensibilidade metapsíquica (é Raymond quem diz) e, assentada a poeira, devotar-se ao "trabalho de decantação espiritual e de elaboração pelo qual a realidade, depurando-se, se transmuda em poesia".
Ora, essa noção simpática e equilibrada de poesia é de certa maneira desmentida no livro, pelo peso incongruente posto num dos pratos da balança. O recorte preciso, que adere habilmente às ondulações evolutivas da poesia do novo século, não contradiz, aliás reforça, um resumo de vôo alto sobre a matéria (o capítulo sobre Claudel nada perdeu de seu frescor e viço originais). Porém, ao se baixar à análise miúda, propriamente formal, em que o lampejo dos sentidos se cristaliza na linguagem, imantado pela estrutura rigidamente composta do poema, o autor muitas vezes frustra os leitores ao contentar-se com afirmações vagas, de gestos amplos.
Entre sincero e compungido, ele renuncia, certa vez, a seu próprio dever de ofício, alegando que "é impossível traduzir o que é somente forma e música".
Em oposição ao conhecimento pelo intelecto, a poesia moderna sempre invocou uma apreensão esfumaçada, opaca e irracional; a tarefa do crítico é justamente recompor, passo a passo, a trilha que leva do racional ao irracional, ou ainda "mostrar" (não apenas enunciar teoricamente, como é de hábito) de que maneira a narrativa se constitui a partir de materiais não literários, manipulados a fim de se tornarem aspectos de uma organização estética regida pelas suas próprias leis", como diz Antonio Candido.
Seja como for, o conhecimento entranhado de Raymond e a riqueza viva da obra superam os eventuais defeitos. Como diz de forma algo dramática na apresentação, ele tentou, em todos os momentos, "tomar o partido da poesia".
Poderia mais comodamente seguir, mas não segue, para o nosso benefício, a sugestão de Rilke, que, já farto das queixas sobre a dificuldade de interpretação de alguns trechos dos "Sonetos a Orfeu", assinala o despropósito da explicação didática, já que a dificuldade, no caso, não requer explicação, mas submissa aquiescência.

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