São Paulo, sábado, 18 de outubro de 1997
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Dá vontade de fugir

HELOISA PRIETO; PAULO DE TARSO MORELLI

HELOISA PRIETO e
PAULO DE TARSO MORELLI
especial para a Folhinha
Não foi amor à primeira vista. A gente já se conhecia de longe. Aliás, minha mãe fica me dizendo que não é amor coisa nenhuma. Onde já se viu uma menina de doze anos se apaixonar?
Eu penso assim: se isso não é amor igual ao dos adultos, então acho melhor nem crescer, porque o que sinto pelo Dedé é muito legal.
O Dedé é um supergato, só que ele é meio diferente. Primeiro, porque ele é ultratímido.
Segundo, porque ele vive se escondendo pelos cantos. Terceiro, porque sempre anda com uma macaquinha no ombro. É doido demais, não é? Eu adoro. Eu acho dez. Ele é meu melhor amigo. E, pra mim, isso é amor.
Bom, até aqui, tudo bem. Mas tem um problema. Já pensou se, um dia, seu irmão declarasse guerra contra o garoto que você gosta?
É mau! Mas piora muito se a sua mãe o apoiar, não é?
É isso mesmo! Vira o maior Romeu e Julieta!
A plástica da mamãe
Meu nome é Paula. Há pouco tempo, minha mãe achou que precisava dar uma geral: foi plástica, massagem, cabeleireiro, ginástica e tratamento para celulite.
No dia em que pintou um superclima com o Dedé, a mamãe tinha feito outra operação.
Depois dessas plásticas, ela fica nervosa e chata. Feia também. Rosto roxo, olhos inchados, faixa, dor e mau humor. Eu ando preocupada. A mamãe exagera.
A gente vinha da clínica de carro quando eu vi o pessoal brincando na pracinha. Tinha gente à beça. De repente, reparei que Spot, a macaquinha do Dedé, vinha correndo para o meio da rua.
Eu ri. Macaco é um bicho muito engraçado. A mamãe gritou. Freou. Quase a gente atropela a Spot. O carro parou. Uma superconfusão.
O Dedé apareceu correndo atrás dela. O pai dele, o doutor Renato, que é veterinário, também. E mais a tia do Dedé, Lola, que é música e tatuadora, as crianças dos prédios e até o mendigo da praça.
Salvando a macaca
Desci do carro. Precisava ajudar. A Spot subiu no alto da mangueira. O Dedé estava tão nervoso que até tremia.
Corri para o lado dele. Ele mal me viu. Olhei bem para a Spot. Eu adoro bicho. Falei com calma, abri os braços, oferecendo colo.
A macaca fez uns barulhinhos engraçados e desceu pelos galhos. Depois saltou nos meus braços. Acho que ela me adorou.
Foi então que o Dedé reparou mesmo em mim. Ficou parado me olhando. Era mágico. A gente nem precisava falar. Os olhos dele brilhavam. A boca quase sorria. Vi que o sorriso dele podia ser lindo. E fiquei com muita vontade de fazê-lo rir muito. De alegria, de felicidade. Isso é amor? Sei lá.
Só que, quando ele chegou perto de mim para apanhar a Spot, a mamãe deu um grito horroroso:
- Paula! Larga esse bicho imundo! Volta pro carro!
Quando a mamãe está brava, a voz dela dói nos ouvidos de qualquer um. A Spot levou um susto. Deu um salto. Escapuliu. Começou tudo de novo.
O Dedé se esqueceu de mim e correu atrás dela. Eu voltei pro carro. Entramos no prédio. Subimos no elevador. A mamãe se olhava no espelho e falava sem parar. Era uma conversa maluca. Ela dizia assim:
- Juro que, se não pegasse mal, eu dava uma surra nesse pivete. Onde já se viu? Gente que cria macaco! Estamos em pleno século 20, e eu ainda tenho de conviver com esse baixo nível. Como é que pode? Parece filhote de neandertal!
Eu ia só dizendo uns "hum, hum...", e pensando, se na pré-história tinha uns garotos com o jeito do Dedé, melhor eu entrar numa máquina do tempo já!
Quando a mamãe desanda a falar abobrinha, eu nem ligo. É o jeito dela!
Só que, naquela hora, eu nem podia imaginar que a mamãe ainda ia ficar muito mais brava. Porque a Spot tinha subido na árvore que dá pra varanda de meu apartamento. Entrou no banheiro de casa pela janela do quarto.
Se lambuzou com os cremes caros da mamãe. Derramou perfume francês no vaso sanitário, sujou o pente de marfim com esmalte marrom. Foi a maior zona de todos os tempos. Não dava para acreditar.
Agora você entendeu porque eu virei uma Julieta? A mamãe declarou guerra contra o Doutor Renato. Meu irmão, contra o Dedé. Mas, no meio disso tudo, aconteceu uma coisa muito linda: o Dedé ficou gostando de mim!
Mas não vá pensando que foi tudo um mar de rosas.
Longe disso! Há épocas que eu choro muito por causa do Dedé.
Tá certo, vou explicar melhor: é que o Dedé é meio esquisito.
Quando a gente se encontra e se diverte muito, fica feliz, brinca, conta segredos um pro outro, eu vou pra casa pensando assim: puxa que dia lindo! Adorei! Da próxima vez que a gente se encontrar vai ser ainda melhor.
O que acontece?
Eu durmo, sonho com o Dedé, acordo cedinho, louca pra falar com ele de novo.
Corro pra garagem depois da escola, que é quando ele fica em casa e... o Dedé demora pra me cumprimentar, ou então finge que não me viu, fica todo frio, distante, como se a gente nem fosse amigo.
No começo, quando ele fazia isso comigo, eu voltava correndo pra minha casa, eu me enfiava debaixo do chuveiro e chorava. É que lá em casa não dá pra chorar. Se a minha mãe ouvir, se o meu irmão perceber, é um sofrimento. Eles pegam no pé pra valer.
Mas voltando ao Dedé. Eu fui ficando muito encanada. Comecei a disfarçar o meu carinho. Só de medo do Dedé me tratar mal. Acho que, se fosse outro garoto, eu tinha mandado passear. Sério.
Eu sempre tive um monte de amigos do meu irmão querendo me namorar, essas coisas. Mas é que eu não consigo parar de gostar do Dedé. Já tentei de tudo. Escrevi o nome dele num papel e piquei em pedacinhos.
Sabe o que aconteceu? O amor aumentou. Depois escrevi o nome dele em outro papel e queimei. A mesma coisa. Eu só pioro. Eu fico cada vez mais apaixonada.
Até que ontem eu finalmente tive certeza: o Dedé também gosta de mim!
O Sebas, que é o melhor amigo do Dedé, me chamou para um cantinho e disse:
- Paulinha, pára de ficar chateada, o Dedé adora você, eu garanto.
- Como é que você sabe? Dedé só me afasta dele!
Foi então que o Sebas abriu a porta de uma geladeira velha que fica no canto da garagem. Fez sinal pra eu ficar bem quietinha. Mandou eu me aproximar. Obedeci. Tinha um pedacinho de papel bem velho, meio amassado no canto dela.
O Sebas sussurrou:
- Escute, Paulinha, esse segredo é pra valer. Nunca conte pra ninguém, hem? Senão o Dedé me mata. Eu descobri isso por acaso. Olhe só.
Abrimos o papel bem devagar pra não fazer barulho. E eu vi. Escrito numa letra toda caprichadinha.
PAULA. PAULA. PAULA. PAULA. PAULA.PAULA.PAULA.
ASSINADO
DEDÉ.
Dei dois beijos no Sebas.
Corri. Esbarrei no Dedé. A gente caiu sentada no chão. Ele falou:
- Paula, eu vim conversar com você...
Eu abri um supersorriso.
- Deixe pra outro dia, eu disse. E saí voando.
Eu tinha entendido o Dedé.
Quando o amor é de verdade, dá vontade de fugir.

Este é um episódio de "A Turma da Garagem", filme com roteiro de Heloisa Prieto e Paulo Morelli, que tem o lançamento previsto para o final de 1998.

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