São Paulo, sábado, 18 de outubro de 1997
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"Violência Gratuita" prolonga jogo de pesadelo

CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR-ADJUNTO DE ESPECIAIS

Após 12 meses de jejum cinematográfico, a apresentação de "A Enguia", de Imamura, e de "Funny Games - Violência Gratuita", do austríaco Michael Haneke, hoje na mostra, constituem um autêntico banquete.
A trama do filme de Haneke é simples: uma dupla de psicopatas toma uma família em férias como refém e a tortura até a morte.
O mais importante, contudo, é o trabalho de construção a partir desse esquema. Haneke filma considerando que, por trás dos olhos que captam suas imagens, existe uma consciência, acompanhada de juízos e de valores.
Seu filme é uma investigação dos efeitos da violência sobre o espectador. Ao contrário dos filmes de ação, em que a violência exerce função de liberar a tensão, aqui o espectador é impedido de gozar.
Para isso, Haneke usa dois artifícios. O primeiro é não oferecer a obscenidade da ação violenta. O ato está sempre em "off", e dele só se percebem os sons -que têm uso brilhante e de resultados terríveis- ou os efeitos -a morte, essa sim inevitavelmente obscena.
O segundo é bloquear a identificação da platéia com as vítimas e substituí-la pela cumplicidade com os assassinos. Em mais de uma situação, um dos torturadores convoca nossa participação em seu perverso jogo, dizendo: "Isso não te causa tanto prazer? Por que não continuar?".
Seus resultados lembram aqueles obtidos por Pasolini em "Saló", filme célebre pelos efeitos insuportáveis sobre o espectador. Ali também o diretor testava os limites do gozo da platéia, mas, ao contrário, oferecendo a obscenidade em quantidades torturantes.
Veterano homem de TV, Haneke conhece o poder das imagens brutais e menospreza a ilusão de distância segura entre a ficção e a realidade. Seu programa como cineasta é conduzir a ficção até um ponto em que ela deixa de ser uma mentira temporária, que se esgota após a projeção, e continua a machucar depois que o jogo acaba.
Apesar de ser incontrolável a vontade de levantar e ir embora, quem resiste até o fim de "Funny Games" sai da sala com a certeza -necessária- de que o pesadelo continua lá fora.

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