São Paulo, domingo, 19 de outubro de 1997
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O Che morto e o Che vivo

ALAIN TOURAINE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Por que essa celebração universal do 30º aniversário da morte de Che, levando-se em conta que o vigésimo aniversário não suscitou uma mobilização nem sequer comparável?
Por que o elogio do herói revolucionário, se a idéia de democracia penetra, enfim, no continente latino-americano, e se as guerrilhas desapareceram em quase todos os países, salvo na Colômbia, onde Che condenara as suas formas de implantação e de luta?
Pode-se dizer, a princípio, que o herói, à medida que a sua figura se esfuma, transforma-se em mito, e que o ministro da Indústria ou o militante são recobertos pela figura do guerrilheiro assassinado, que lembra Cristo. É o Che morto, mais que o Guevara vivo, que sobe ao paraíso dos heróis sacrificados.
A esta concepção um tanto literária soma-se outra, mais histórica. É justamente porque os modelos cubano, soviético e chinês desapareceram que o herói revolucionário reaparece por trás das imagens enferrujadas ou negativas dos governos pós-revolucionários, como os de Stálin, Mao e Fidel. Falou-se, muitas vezes, da passagem da ética à política, e André Malraux romanceou com brilho essa passagem durante a guerra civil espanhola.
Mas hoje, talvez, deva-se falar do retorno da política à ética. No Chile, por exemplo, ninguém mais exalta a unidade popular e sua política, embora a imagem de Allende, tão pouco carismática, tenha se tornado inesquecível -símbolo de uma vontade de justiça e não de uma política que conduziu ao desastre econômico.
Assim, seria por causa da queda do Muro de Berlim, por causa da ausência de regime revolucionário, por causa do domínio avassalador das redes financeiras e econômicas capitalistas que a figura de Che surge como um protesto silencioso, diante do qual ergue-se a América Latina e o mundo inteiro, assim como Hamlet erguia-se diante do fantasma de seu pai assassinado.
Essa explicação é talvez a melhor; ela corresponde aos sentimentos, à nostalgia de todos os que viveram, como a melhor parte de si mesmos, as suas idéias revolucionárias, e que muitas vezes não se orgulham do que se tornaram, dos compromissos ou das renúncias que tiveram de aceitar: são estes que reencontram, no rosto do Che assassinado, os seus próprios ideais burlados.
Contudo deve-se acrescentar a esta explicação uma outra, menos romântica, mas também menos arbitrária. As guerrilhas revolucionárias desapareceram, mas as situações revolucionárias persistem.
A exigência de mudança e de revolta se faz presente, ainda que os movimentos sociais organizados tenham desaparecido e que os partidos se orientem cada vez menos por uma ideologia e se transformem em agências de conquista do poder. Na América Latina de hoje, quase não há mais relação de dependência entre a pobreza, a miséria e a violência, por um lado, e os planos de ajuste da economia nacional aos mercados internacionais, por outro.
Não que todos os governos sejam ultraliberais -erro a ser rigorosamente evitado -, mas porque não há partido, movimento ou debate que preencha o imenso vazio que separa os incluídos dos excluídos, os centrais dos marginais, aqueles que vivem à larga e aqueles que, a bem dizer, nem sequer vivem, ou o fazem ao preço de grandes sacrifícios.
Nessa noite e nesse silêncio, a luz que ilumina o rosto de Che é o indício de um caminho; não daquele seguido por Che, mas ainda assim de um caminho, de uma possibilidade de ação, de uma esperança de ação contra a miséria e a injustiça.
A América Latina, como a Europa ocidental, não tardará a ver que a sua tarefa principal não é a destruição dos restos de um antigo sistema social e político já efetivamente destruído. Nos próximos anos, ela imporá objetivos mais positivos. Por um lado, é preciso que os políticos dêem cada vez mais importância à luta pela educação, saúde e habitação, e, por outro, que os arroubos contra a pobreza transformem-se, aos poucos, em forças políticas, capazes de formular propostas factíveis.
Estamos ainda muito longe deste momento em que se recomporá um campo propriamente político, em que se enfrentarão idéias tanto inovadoras quanto realistas. Daí por que, no silêncio político atual, a imagem do Che combatente e vítima é um primeiro ponto de referência.
Afinal de contas, os milhões de jovens que aclamaram o papa nas Filipinas ou na França não são, em sua maioria, militantes da Igreja Católica; muitas vezes, eles se opõem às posições da Igreja sobre pontos essenciais que tocam a vida privada. Mas eles querem opor-se ao utilitarismo dominante e anseiam pela experiência de estar juntos, para partilhar uma espera e uma exigência.
A figura de Che não é só um mito, não é só um ideal que se separa das formas adotadas por este ideal na história; ela é um sinal na noite -um sinal de esperança e, também, de solidão. Ninguém mais pensa que voltará o tempo das guerrilhas, e muitos gostariam de ouvir novamente as vozes que reclamam a Justiça e que denunciam as desigualdades escandalosas.
A celebração do 30º aniversário da morte de Che não é apenas um adeus ao passado há muito desaparecido; é um sinal rumo ao futuro, um desejo ainda imóvel de andar, a necessidade de um ideal capaz de transformar as sociedades tão pouco ciosas da Justiça. O guevarismo desapareceu -e com ele os regimes pós-revolucionários a que fazia referência, mas o exemplo do combatente sem esperança persiste e anima os que ainda não possuem novas esperanças, embora sofram a sua ausência.

Tradução de José Marcos Macedo.

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