São Paulo, domingo, 19 de outubro de 1997
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NOITE NO BRRRASIL

MARCELO REZENDE
DA REPORTAGEM LOCAL

Aos 12 anos, Elisa, hoje uma jovem de 17, ganhou do pai, diretor de um banco, a primeira guitarra. Na época, lembra-se, tinha a sensação de que a vida estava fora de lugar.
No dia 31 de agosto, Elisa compareceu a algo que, para ela, agora é quase uma rotina: uma noite de música e furiosos discursos contra "mulheres que fazem do homem um subsídio". Abandonava os sentimentos da infância. Encontrava uma causa.
No minúsculo palco do pequeno, e abafado, Espaço Retrô (uma casa noturna voltada para a música "alternativa" no centro de São Paulo) quatro bandas se revezavam na festa de lançamento de mais um número do fanzine "Cantinho das Felinas". Uma publicação em xerox, de periodicidade irregular, que traz informações sobre o pop nacional e internacional, novos costumes, receitas de bolo, dicas de perfume e a melhor maneira para se encontrar um batom satisfatório.
Para as bandas, a ocasião oferecia ao menos duas grandes oportunidades: a primeira, espaço para os novos grupos se apresentarem. A segunda, um público para escutar suas canções. E suas razões.
"Quando tinha 13 anos", conta Elisa, "ouvia absurdos sobre as mulheres. Diziam que elas apenas se invejam, que a amizade entre elas era impossível. Me sentia sozinha". Seu primeiro encontro com o feminismo foi nessa solidão, quando descobriu o que chama de "feministas francesas" e seu maior nome, Simone de Beauvoir.
Mas o que "O Segundo Sexo" e o existencialismo não lhe deram, ela encontrou em bandas norte-americanas formadas por garotas, como Sleater-Kinney ou Bikini Kill: a chance de unir o discurso às canções. O voluntarismo aos shows. Os livros ao combate.
"Acho que algumas coisas daquele tempo já não têm mais sentido... Não se trata mais de ser contra o homem, e sim ser a favor da mulher", diz Elisa, que prefere não divulgar seu sobrenome.
"Meu corpo me pertence"
"Tomei conhecimento do movimento 'Riot Grrrls' há três anos, lendo os semanário inglês 'Melody Maker' ". Alê, 26, pertence aos grupos Pin Ups e Kit Kat Club. Ela também edita o "Cantinho das Felinas", que pensa ter poucas aproximações com "Riot ou Bad Grrrls", apesar de defender o espaço e os direitos da mulher.
"A minha impressão é de que as mulheres se coloquem na posição de vítimas, uma reclamação constante. Talvez seja algo adolescente demais. Tudo é muito elitista. A maioria das meninas que faz discursos contra a opressão masculina, a violência contra a mulher, nunca tomou um ônibus."
O que causou então essa adoção brasileira? A mídia, segundo ela, mais uma vez se apropriou de algo interessante, repleto de possibilidades, para transformar em moda, um fetiche sem propósito: "Já existe um modo 'Riot' de se vestir, de falar...".
A grande deficiência do movimento, para ela, estaria no curto-circuito de "venda e compra" da cultura jovem pela indústria de entretenimento, capaz de causar uma verdadeira fascinação -e não reflexão- no consumidor.
Mas isso não a impede de ver na "nova cena" uma conquista: "Uma adolescente pode ganhar mais confiança, auto-estima, compreender melhor a situação que vive".
Se existem falhas e limitações, há também os resultados. Em São Paulo existem o "Kaóstica Zine", "Riot Grrrl Eject - zine", "Electra" e "Libertação Feminina". Em Santa Catarina, o "TPM". No Rio Grande do Sul o "Effect Fish".
Os EUA (um lugar repleto de publicações do gênero) oferecem o "Gerll Fanzine Distro" e o "Bitch"; na Inglaterra, o "Girl Frenzy" e, no Chile, há o "Sangre en el Ojo", que em seu primeiro número avisava que "durante muchos años, por lo menos en que se conoce como 'mundo civilizado' la mujer se ha visto sometida a diferentes tipos de machismo".
Todos os fanzines -assumindo ou odiando o rótulo de "Bad ou Riot"- têm um propósito comum: denunciar e contestar qualquer violência sofrida pela mulher, especialmente física ("meu corpo me pertence"), negando a idéia vulgar de que as ações feministas têm, subentendidas, uma pregação lésbica.
Leis Patriarcais
No Espaço Retrô, Elisa se apresentará com a banda Lava, um de seus "projetos paralelos". No circuito, ela é mais conhecida como guitarrista e vocalista do "Dominatrix", que há alguns meses lançou seu primeiro CD, "Girl Gathering" ("Reunião de Garotas"), pela gravadora independente "Teenager in a Box".
Todas as canções são em inglês, com nomes como "Minha Nova Arma" ("esses garotos pensam que você é fascista porque eles nunca viram a força da unidade das mulheres"), "Leis Patriarcais" ("eles me ensinaram a ser uma mulher, que não é mais do que ser uma esposa") ou "Perto o Bastante para Pular" ("nós somos uma ameaça a alguns meninos e não estamos com medo").
O CD, além das letras, traz endereços de fanzines e associações de defesa dos direitos da mulher. Entre elas, o Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde e a União das Mulheres de São Paulo, onde Elisa participa das reuniões.
"Você encontra pessoas de todas as classes sociais e discute os problemas que as mulheres estão enfrentando", diz. Geralmente, usa os reduzidos cachês de seu grupo para promover um "trabalho de conscientização", com mais discos, camisetas e fanzines.
Já no início da madrugada o Lava -a segunda banda da noite- sobe ao palco. Produz um som ruidoso e logo na terceira canção lembra da política do governo brasileiro em relação ao aborto. No público, algumas pessoas sorriem, outras aplaudem. Um grupo de cinco rapazes se forma. Entre eles, um comentário: "Elas não são interessantes?".

Onde encomendar
O CD "Girl Gathering", da banda Dominatrix, pode ser encomendado pela Caixa Postal 205, São Paulo-SP, CEP 01059-970.

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