São Paulo, domingo, 19 de outubro de 1997
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Ver 'Por Amor' é como reler um livro ruim

FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR-ADJUNTO DE OPINIÃO

Ver "Por Amor" é como ler um mau livro pela 15ª vez. Não há -como dizer?- o que comentar a respeito dessa novela. A crítica (modo de dizer), sem exceções, recorremos a frases semiprontas quando algo assim pinta na tela da Globo. É simples: "A nova novela da Globo, 'Por Amor', estreou esta semana trazendo de volta ao horário nobre o velho dramalhão, dessa vez pela mãos de um mestre do gênero, Manuel Carlos. Todos os clichês de uma boa trama lacrimejante compareceram já no primeiro capítulo. Regina Duarte, a eterna namoradinha do Brasil,... blá, blá, blá....".
É isso o que devem ter dito por aí de "Por Amor". Os críticos repetem como sonâmbulos os clichês que apontam na novela. São, por assim dizer, seus cúmplices involuntários; celebram a burrice acreditando estar acima dela. Pura ilusão. As frases feitas brotam sobre o papel como as tomadas panorâmicas do Rio ou de Veneza surgem na tela. Não há, a rigor, nenhuma diferença entre a pieguice da novela e a falsa pieguice daqueles que se esforçam em ridicularizá-la.
Reconhecer esse círculo vicioso é fácil; mais difícil é escapar dele. Isso talvez tenha uma explicação um pouco menos banal.
"Por Amor" não inova simplesmente porque o gosto médio do público é estacionário e refratário a tudo o que se fez em matéria de arte no século 20. As pessoas querem emoções barateadas e histórias lineares, dramas de amor salpicados por toques de humor, pitadas de angústia e suspense para temperar o inevitável final feliz.
Querem o velho Fagundes no papel de galã da meia-idade, querem ver Regina eternizada na tela, passando o bastão da dinastia Duarte a sua filha Gabriela, a futura namoradinha...
Querem fingir que não sabem o que vai acontecer daqui a seis meses, quando a novela acabar, para poder começar a fingir de novo, quando o primeiro capítulo da próxima novela surgir no ar.
Essa coisa é uma ladainha. Talvez fosse preciso evitar o comentário mais localizado e restrito e perguntar por que, afinal, a novela -o gênero- se transformou no fato cultural hegemônico no Brasil. Intelectuais, cada vez mais, se ocupam de quase tudo; não conheço, no entanto, um que tenha procurado responder a essa questão. Ela deve ser irrelevante, mas, de qualquer forma, seria preciso levar em conta que viramos uma sociedade de massas, que fomos conectados ao universo do consumo dos bens culturais fornecidos pela indústria da diversão sobretudo vendo novelas.
Elas são, por definição, o assunto cultural do país, o que, se fosse levado a sério, talvez servisse para explicar um pouco melhor um e outro.
O grosso da nossa formação cultural não passou pela literatura (hoje mera obrigação curricular), pelo cinema ou pelo teatro, coitado. A música talvez seja uma exceção, mas hoje a sua influência está subordinada a programas de auditório ou ao espaço que os artistas encontram na TV para "divulgar o seu talento". A aberração sertaneja e o sucesso estúpido de nulidades musicais do tipo Xuxa e Angélica são apenas os sintomas mais horripilantes disso.
Para complicar as coisas, a consolidação da novela entre nós se deu em pleno regime militar, quando o sonho desenvolvimentista dos anos JK sofreu um revés conservador para assumir uma feição excludente, no campo social, e carola, em termos de valores. Houve, é claro, Tropicalismo, Oficina, Glauber Rocha etc., mas eles foram sendo confinados a um pequeno grupo de intelectuais até serem trucidados pela censura.
Discutir novela, portanto, seria rever um pouco essa história, o que dá trabalho, é chato e consome tempo. Discorrer só sobre "Por Amor" não vale o preço que o leitor paga pelo jornal. Quem quiser ver, que se divirta à vontade.

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