São Paulo, segunda-feira, 20 de outubro de 1997
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Morrissey continua sem saber se a vida vale a pena

ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um inglês sério, de blusa com gola em "V" e mocassins de bico quadrado, aparece em páginas e páginas de todas as revistas de música que contam.
Ele tem costeletas. Não parece afeito a sorrisos.
O inglês se chama Morrissey, Stephen Patrick Morrissey, fez parte dos lendários Smiths e tem agora nas lojas um novo álbum, "Maladjusted".
O título da faixa principal é um labirinto de significados, "Alma Matters". Mix bastardizado de latim e inglês, lembra a expressão latina "alma mater" (a mãe que nutre), pode ser uma alusão a questões da alma, ou ainda um lembrete: a alma importa.
E a alma importava quando Morrissey apareceu com os Smiths, no começo dos anos 80, avisando que a Inglaterra era dele e lhe devia uma vida.
Foi fulminante.
A bateria de Mike Joyce era filha do punk, mas a guitarra de Johnny Marr tinha uma delicadeza única, diferente de tudo o que se ouvia na época.
As letras, responsabilidade única de Morrissey, tratavam de temas comuns na poética rock and roll (dúvidas, tédio adolescente, espera), mas com um lirismo arrebatador.
Os álbuns se sucediam, conquistando também o público americano e, em consequência, o restante do mundo.
"Hatful of Hollow" (aquele da capa azul) trazia uma das melhores canções de todos os tempos, a reverberante "How Soon is Now": "Quando você fala que vai acontecer agora/ O que exatamente isso quer dizer?/ Faz muito tempo que eu espero/ E agora minha esperança acabou".
"Meat is Murder" passou sem muito impacto, mas "The Queen is Dead" (1986) fixou de vez os Smiths como a banda-símbolo daquele tempo. Provocou até reações extremadas, como uma eleição entre os leitores da revista americana "Spin" que o apontou o melhor disco da história.
Exageros à parte, o fato é que "The Queen is Dead" traz alguns dos versos mais fortes já escritos no rock. Como os da absurdamente triste "I Know It's Over": "O amor é de verdade e natural/ Mas não para mim, nem para você/ Meu amor".
Terminada a banda, a carreira-solo de Morrissey coincidiu com o ápice do grunge. A introspecção cedeu lugar à revolta explícita, a sutileza perdeu terreno para os decibéis. Definitivamente, não era a praia de Morrissey.
Ele mantinha um trabalho digno, às vezes pesado, quase rockabilly, mas acabou sendo visto como uma espécie de "tia velha" a choramingar trancado no quarto, enquanto a rapaziada de camisa de flanela só queria beber cerveja, fazer barulho e arrebentar tudo.
O grunge passou, Morrissey ficou relativamente quieto no seu canto e agora, parece, está sendo reabilitado, como se dizia na China comunista.
Morrissey merece. Sua música pode estar datada, seus lamentos sem fim cansaram um pouco. Mas ninguém antes dele cantou de modo tão preciso as incertezas de ser jovem, a angústia de não saber se a vida vale a pena.

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