São Paulo, domingo, 26 de outubro de 1997
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A SÍNDROME DAS BANANAS

CARLOS CALADO

"Quer dizer, que nós fazemos parte do tropicalismo? Mas o que é isso? Tropicalismo vem de onde?"
Ao ler as primeiras notícias sobre o lançamento da "cruzada tropicalista", Gilberto Gil ficou surpreso. Sua primeira atitude foi procurar os parceiros, para que o ajudassem a entender exatamente o que era aquilo. Menos ligado ao universo dos livros e das discussões estéticas do que Caetano, Torquato ou Capinan, Gil estranhou ver sua música relacionada a um amplo movimento cultural, sobre o qual jamais ouvira falar. Na verdade, para o pragmático Gil, a própria noção de cultura ainda soava como algo muito abstrato, naquela época. Para ele, as artes funcionavam, antes de tudo, como entretenimento.
Caetano até achou simpática a iniciativa de Nelson Motta, lançando a "cruzada tropicalista", mas o artigo em si não o agradou. Se já resistira bastante a adotar "Tropicália" como título de sua canção-manifesto, Caetano gostou menos ainda de ver seu projeto musical rotulado de Tropicalismo, confundido com aquele folclore todo de ternos de linho, chapéu de palha, xarope Bromil e sambas-canções.
A dificuldade para encontrar um nome apropriado ao tipo de experiência musical que ele e Gil estavam desenvolvendo já vinha de algum tempo. De início, os dois chegaram a utilizar, especialmente em entrevistas, a expressão "som universal". Porém, mesmo este rótulo não satisfazia Caetano. Pouco depois, ele trocou-o pelo termo "som livre", que passou a usar, sempre que possível. No entanto, depois que o termo tropicalismo se espalhou definitivamente, com uma velocidade típica das modas de verão, Caetano chegou à conclusão de que não valeria mais a pena ficarem brigando com o rótulo:
"Se essa é a palavra que ficou, então vamos andar com ela", disse a Gil, sugerindo que aproveitassem o circo já armado pela mídia.
Mesmo que o rótulo Tropicalismo tivesse pouco a ver com o que vislumbravam em termos musicais, Caetano e seus parceiros avaliaram que a propaganda poderia ser útil, de alguma maneira. Apesar das ressalvas, os baianos acabaram aceitando virar tropicalistas.
Vestindo um camisolão estampado com bananas estilizadas, lá estava o sorridente Caetano Veloso, naquele 9 de abril de 68, como astro principal da "Discoteca do Chacrinha", o anárquico programa de auditório de Abelardo "Chacrinha" Barbosa. Decorado a caráter para a anunciada "Noite da Banana", o palco da TV Globo, no Rio de Janeiro, mais parecia um depósito de bananas. Além de cantar sua "Tropicália", Caetano tirou do baú algo perfeito para a ocasião: a marchinha "Yes, Nós Temos Bananas" (de Braguinha e Alberto Ribeiro).
Decididos a aproveitar a onda deflagrada nos jornais, os baianos puseram as mãos à obra, com vontade. Duas semanas antes, Caetano e Gil tinham se desligado definitivamente da TV Record, em meio a um bate-boca com Paulinho Machado de Carvalho que chegou à imprensa. Sem papas na língua, em entrevista ao "Jornal da Tarde", o diretor da emissora paulista culpava Guilherme Araújo pelos desentendimentos. Carvalho acusava o empresário de ter prejudicado a imagem pública dos baianos. Até mesmo o fato de Caetano ter acabado de comprar um Mercedes 59 entrou na lista de críticas:
"Nenhum produtor daqui concordava com a nova imagem criada nos últimos seis meses: terninho inglês, chofer, Mercedes Benz, camisolão e um apartamento na São Luís. Veloso deixou de ser o menino simples e querido por esta simplicidade", apontava o chefão da Record.
Na verdade, Caetano, Gil e Guilherme já andavam descontentes havia alguns meses com a direção da emissora. A promessa de um programa liderado por Caetano -feita logo após a explosão de "Alegria, Alegria"- foi protelada várias vezes, sem motivos convincentes. Enquanto isso, cada vez mais insatisfeitos, ele e Gil seguiram fazendo aparições esparsas nos programas musicais da casa.
O pivô do último desentendimento foi Gal. Avisado de que faria um número junto com ela, no "Jovem Guarda", quando chegou ao Teatro Record, Caetano notou que nem seu nome, nem o de Gal, constavam da pauta. Ao reclamar, foi informado de que dariam um jeito para que ele ainda entrasse no programa, mas sem a companhia de Gal. Caetano ficou furioso. Vendo a decepção da amiga, que saíra do Rio só para participar do programa, explodiu:
"Então você diga a Paulinho Machado de Carvalho que ele meta a televisão dele no cu! Eu estou saindo agora da TV Record!".
Em meio ao bate-boca que se seguiu entre Guilherme Araújo e a direção da emissora, Jorge Ben, o mais novo contratado do empresário, também decidiu deixar a TV Record. Dias depois, Guilherme iniciou conversações com a TV Globo, propondo que esta produzisse um programa com Caetano, Gil e outros tropicalistas.
Críticas a Guilherme, na mesma linha das feitas por Paulinho Machado de Carvalho, passaram a ser frequentes, tanto nos meios musicais como na imprensa paulista e carioca. Influente na mudança do visual de Caetano e Gil (não só dava palpites no guarda-roupa de ambos, como até chegava a comprar algumas peças), Guilherme era responsabilizado, por vários desafetos, de ter sido o culpado pela guinada musical dos baianos. Apesar da semelhança das críticas, nem todos eram tão agressivos como Stanislaw Ponte Preta, em sua coluna no jornal "Última Hora":
"No Rio, o costureiro Guilherme Guimarães tornava-se um tremendo machão, ao declarar à imprensa: 'Minissaia nunca foi coisa pra homem'. Em São Paulo, outro Guilherme, porém, Araújo, tornava-se o grande vigarista da música popular brasileira de 1967, inventando uma besteira chamada 'som universal'. E o pior é que arrumou dois cúmplices: Caetano Veloso e Gilberto Gil, ambos baianos".
Quando tinha a chance de se defender, o empresário-produtor mostrava saber exatamente o que estava fazendo. Como numa reportagem da séria revista "Visão", publicada em 12 de abril de 68, que apontava o fato de o aumento da popularidade de Caetano e Gil ter coincidido com a mudança de imagem dos dois artistas. "É evidente que a nova linha musical assumida por eles muito contribuiu para isso, mas é indiscutível também que a nova imagem ajudou", observava a revista.
"Quando a máquina publicitária propõe um artista que não corresponde a uma necessidade do público no momento, o artista não resiste", dizia Guilherme. "O tempo desgasta o interesse que pode haver em torno de uma nova cara por mais estranha e bela que seja. Se o artista não tiver valor ou capacidade de renovar-se, nada adiantará o impacto da imagem."
Já no final de abril, Caetano, Gil, os Mutantes e Jorge Ben acabaram assinando um contrato com a Rede Globo de Televisão, a Standard Propaganda e a Rhodia. O ponto principal das negociações, conduzidas por Guilherme Araújo, era a produção de um programa mensal, o "Banana Especial", que seria apresentado por Caetano e Gil, com participações de outros tropicalistas. A direção do programa ficaria a cargo de José Celso Martinez Corrêa, do Teatro Oficina. Como parte de suas obrigações no contrato, Caetano e Gil deveriam participar de um show-desfile da Rhodia, também dirigido por José Celso, com apresentações em vários Estados do país.
Começou assim um tumultuado processo de discussões entre a emissora, o patrocinador, os artistas e o empresário, que se arrastou por meses. O principal ponto de atrito era justamente a presença do diretor do Oficina, cujas idéias radicais preocupavam a direção da Rhodia (em tom de piada, dizia-se que Lívio Rangan, o diretor de eventos institucionais da empresa, teria receio de que Zé Celso repetisse o tom agressivo e caótico da montagem de "Roda Viva"; talvez decidisse rasgar e queimar os vestidos da coleção, transformando o show-desfile em uma "Rhodia Viva"). Assim, o programa tropicalista não só mudou de nome, como teve sua produção adiada várias vezes.
Enquanto isso, Caetano, Gil e os Mutantes passaram a ser atrações frequentes nos programas de Chacrinha. O sucesso da primeira "Noite da Banana" provocou mais uma "Discoteca" dedicada aos tropicalistas, dessa vez contando também com Nana Caymmi, que até ajudou o apresentador a distribuir bananas para a platéia. Outra convidada especial foi a veterana cantora Araci de Almeida, escolhida pessoalmente por Caetano.
A produção do programa caprichou nas atrações extravagantes. Horas antes da gravação, caminhões carregados ficaram à frente da TV Globo, distribuindo bananas aos interessados. O tema da noite também gerou dois concursos: quem comesse mais bananas durante o programa ganharia um prêmio de 100 cruzeiros novos; quem passasse mais tempo plantando bananeira (de cabeça para baixo, com as pernas para cima) levaria 200 "mangos".
A participação em eventos e programas debochados, como o de Chacrinha, certamente ajudou a popularizar a imagem e as canções dos tropicalistas, mas também serviu de motivo para críticas mais indignadas ainda. O próprio Nelson Motta acabou se irritando com o oba oba geral. Em 3 de maio, com o título "Abaixo o Tropicalismo", o repórter e letrista criticou duramente o desvio do movimento, unindo, de certo modo, as críticas que Hélio Oiticica e Torquato Neto já haviam feito:
"Imediatamente foi criada a confusão, e esse 'tropicalismo' foi rapidamente industrializado e consumido, sem qualquer proposição política ou cultural, simplesmente como mais um produto lucrativo no mercado de consumo. Ligado imediatamente ao mau gosto e ao antigo, fora de moda. Sem qualquer cogitação da origem desse mau gosto ou desse antigo e fora de moda, que ainda existe porque o Brasil parou no tempo.
O que está aí, esse 'tropicalismo' comercial e apenas inconsequente e divertido, não tem qualquer semelhança com a seriedade de José Celso, de Oswald ou de Caetano Veloso, às vezes. Sim, porque Caetano, intencionalmente ou não, colaborou muitas vezes para confundir o público, tomando atitudes contraditórias e perigosas, longe da idéia séria e profundamente inquietante da sua 'Tropicália'. Um pouco de seriedade não faz mal a ninguém".
Mas a vertigem das bananas prosseguiu com toda força. Em 31 de maio, foi a vez da "Noite da Chiquita Bacana" -uma festa criada por Capinan, no Grêmio Recreativo Norte-Sul, uma gafieira da Praça Onze, no Rio. O convite para o evento já deixava claro seu tom de "cafonice": permitia-se levar radinho de pilha, lanche e quantos acompanhantes o convidado desejasse.
Além do tradicional baile, animado pela orquestra Bananas Boys, também foi programado um concurso de fantasias. O próprio convite sugeria alguns trajes convencionais: rumbeira, havaiana, borboleta, fada, pirata, chinês ou tirolês. Para quem quisesse algo mais "realista", as sugestões de trajes incluíam: Chacrinha, Flávio Cavalcanti, Rui Barbosa e Luz del Fuego. Os prêmios para os vencedores acompanhavam o espírito da festa: discos de Vicente Celestino, Teixeirinha, Nelson Gonçalves e Emilinha Borba; livros de Ibrahim Sued e J.G. de Araújo Jorge; imagens de São Jorge; flores de plástico; abacaxis e, para variar, bananas.
Longe de querer emprestar qualquer caráter mais sério ao evento, Capinan não deixava dúvidas sobre suas intenções: "A festa não tem outro objetivo se não sair da rotina da vidinha noturna da Zona Sul. Alguma coisa que seja diferente do chope geladinho dos bares de Ipanema, das conversas sobre o Vietnã e a nova Revolução Francesa", dizia o letrista à reportagem do "Jornal da Tarde".
Gal e Caetano estavam felicíssimos, naquela noite. Sentados ao lado de Dedé e outros amigos, em uma mesa do Patachou, ainda comentavam os detalhes da sessão de gravação que acontecera pouco antes. Emocionados, os dois chegaram a chorar, no estúdio da RGE, quando Gal terminou de gravar o vocal de "Baby", uma canção que Caetano fizera para o álbum coletivo dos tropicalistas.
Não bastasse o belo arranjo orquestral de Rogério Duprat, que misturava bossa nova e música pop, compondo uma delicada obra-prima tropicalista, havia também um detalhe curioso sobre a canção, que só poderia ser explicado como obra do destino. Caetano compusera "Baby", originalmente, imaginando que ela seria interpretada por Maria Bethânia. No entanto, dias antes da gravação, a irmã desistiu do projeto. Só assim Gal tivera a chance de gravar "Baby", aliás, com um interpretação tão sublime que a canção mais parecia ter sido feita sob encomenda para sua voz.
Para Caetano, era natural que sua irmã participasse do disco-manifesto dos tropicalistas. Afinal, mesmo com uma relativa distância, ela acompanhara -inclusive dando dicas importantes- todo o processo que o levara a essa nova fase musical. No entanto, escaldada pela situação que enfrentara dois anos antes, quando fora transformada, contra sua vontade, em musa da canção de protesto, Bethânia acabou decidindo não mais participar de grupos ou movimentos artísticos.
"Eu posso cantar todas as canções que vocês me apresentarem, desde que eu goste delas, mas não quero estar no disco da Tropicália, no show da Tropicália, nem no programa de TV da Tropicália. Amanhã ou depois, eu posso não querer mais cantar nada disso. Prefiro ficar livre", justificou a decidida Berré.
Quando Geraldo Vandré se aproximou da mesa, com uma de suas costumeiras provocações, Caetano e Gal nem se perturbaram.
"E então, Caetano, quais são as novidades? Como vão as maluquices que você andam fazendo por aí?"
"Não sei se você sabe, mas estamos gravando um disco coletivo, com todos os baianos mais a Nara Leão. Ainda estamos emocionados, porque Gal acabou de gravar uma canção minha, com um arranjo de Rogério Duprat, que ficou uma coisa linda!"
"Como é, Gal? Cante!", pediu Vandré.
Tímida como sempre, Gal baixou os olhos e, com a voz pequena e delicada, começou a cantar:
"Você precisa saber da piscina/ Da margarina/ Da Carolina/ Da gasolina/ Você precisa saber de mim/ Baby, baby/ Eu sei que é assim/ Baby, baby/ Eu sei que é assim/ Você precisa tomar um sorvete/ Na lanchonete/ Andar com a gente/ Me ver de perto/ Ouvir aquela canção do Roberto/ Baby, baby/ Há quanto tempo...".
Vandré nem esperou que Gal cantasse a segunda parte da canção. Interrompeu-a de modo bastante agressivo, dando um murro na mesa e gritando:
"Isto é uma merda!".
Por muito pouco, Caetano não pulou no pescoço de Vandré. Furioso, com o dedo em riste, retrucou no mesmo instante a agressão:
"Respeite pelo menos Gal, seu filho da puta! Saia imediatamente daqui e nunca mais fale comigo!"
(A mágoa de Caetano demorou a passar. Os dois só voltaram a se falar anos mais tarde, quando Vandré o procurou para se desculpar, na época em que ambos estavam vivendo no exílio.).

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