São Paulo, segunda-feira, 27 de outubro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Internet estréia no papel de suspeita de sempre

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

A Internet estreou no Brasil um papel que já desempenhou em outros lugares do mundo: o de suspeita de sempre. Uma garota se apaixonou navegando e fugiu de casa com um namorado. A perseguição ao casal me lembrou um pouco o poema "O Padre e a Moça", de Drummond, levado ao cinema pelo também saudoso Joaquim Pedro de Andrade.
"Peguem o casal virtual", diziam alguns jornais. "Onde está a garota que se perdeu pela Internet?", perguntavam outros, como se a rede fosse uma espécie de vibrador descontrolado que devesse ser mantido fora do alcance de meninas inexperientes.
Homens e mulheres sempre se apaixonaram pelo correio ou mesmo trocando suas vozes sensuais ao telefone. O que dizer das flores, que, enviadas estrategicamente para uma desconhecida, podem abrir as portas de seu coração? Nenhum desses estratagemas é tão suspeito como a Internet magnetizada pela nossa fantasia.
Nos Estados Unidos, a Internet vive o mesmo drama. Pornografia, cultura sedutora de drogas, todos os pecados circulam perigosamente entre os computadores, a julgar pelas reportagens de jornal. A revista "Wired" publicou um longo artigo ironizando o "New York Times", e o título era bastante sugestivo: "O que é que o 'New York Times' andou fumando?".
Agora podemos entender melhor todo esse debate. Clinton foi ao Rio conectar a Mangueira na Internet. Simbolicamente, estava lançando o morro e o Brasil na sociedade de informação. Ninguém analisou o conteúdo de seu gesto porque aquela história de bater o pênalti e fazer o gol acabou dominando a cena. Era mais fotogênico, e todos queriam saber se o presidente era simpático mesmo, irritados que estavam com as medidas de segurança que antecederam a visita.
Acontece que nosso guia no espetacular mundo da informação trabalhava com dados no mínimo exóticos, nos relatórios reservados sobre a vida no Brasil. Um deles chegou a afirmar que os brasileiros gostam de fazer sexo no estacionamento.
Nesse caso não foi a Internet, mas o estacionamento, que figurou como suspeito. Drive-in, queriam dizer? O importante, nesse caso, é observar que a idéia de sexo sem controle, historicamente, é uma fantasia que sempre projetamos nos povos da floresta.
No seu livro "Florestas à Sombra da Civilização", Robert Pogue Harrison analisa a visão que o pensador Giambattista Vico, no século 18, retratava dos gigantes que viviam na floresta, fazendo sexo descontroladamente, respeitando seus desejos e instintos.
O livro de Harrison, editado pela University of Chicago Press, analisa todas as sombras que os antigos projetavam na floresta, considerada uma espécie de ponto de partida na história de uma civilização que passaria pelo carro (e, naturalmente, pelo estacionamento) e desembocaria na Internet, outro obscuro universo de nossos desejos.
A relação desses dois episódios, a fuga da moça e o relatório que fizeram para Clinton, revela um marco histórico (entendida a história aí como essas pequenas coisas desprezadas pelos historiadores) no encontro de duas culturas. Estávamos pensando nos mesmos fantasmas das florestas. Eles estavam desconfiando desses terrenos baldios onde se estacionam os carros. Nós, desconfiando dessa rede à qual Clinton simbolicamente nos atou.
Em ambas as fantasias, a urgência amorosa que nos faz perder a cabeça reinava absoluta. Católicos e protestantes irmanados no mesmo respeito cerimonioso diante do inimigo principal: o sexo. O papa reuniu as famílias, terminando seus discursos com terríveis condenações ao aborto.
Em duas grandes visitas, os líderes da humanidade lançaram a mesma mensagem, por caminhos distintos. O papa e o relatório de Clinton serviram como uma ducha de água fria, uma piedosa contribuição para um inferno tropical.
Interessante é que o papa e Clinton viram mais os fantasmas da floresta do que a própria floresta queimando, uma espécie de emergência planetária. Os americanos estavam com milhões de Divine Browns na cabeça. O papa, possivelmente, comovido com o drama das mães solteiras.
Essa idéia do estacionamento não é de todo desprezível. Bons empresários, no grande estilo americano, poderiam lançar mão dela. Estacionamentos com televisão em cores, espelhos no teto, duchas térmicas, vagas redondas e caixinhas de lenço de papel. Por que não?
Se obedecermos todos ao papa, casando-nos direitinho, podemos nos entregar sem culpa à proposta do relatório da equipe de Clinton. O trânsito fluiria melhor, cairiam os índices de poluição e as autoridades ambientais de São Paulo encontrariam, finalmente, uma fórmula amorosa de rodízio.
Se as coisas não melhorassem assim mesmo, bastaria combinar as duas fórmulas de rodízio, introduzindo um mínimo de controle nos estacionamentos. O que fazer? A civilização pede: às segundas, faz-se amor nos carros de final zero e um; às terças, nos de final dois e três.
Ah, diriam: "Isso só vai fazer com que comprem dois carros, com numeração diferente". Matematicamente, poderíamos fazer com que pagassem pela audácia. O sorteio seria programado de tal forma que, num dia, poderiam circular sem fazer amor. No outro, fazer amor sem circular.
Restam apenas aqueles que só têm dinheiro para um carro. Esses podem cair no rodízio duplamente -nem estacionamento nem amor. Só lhes restaria ficar em casa, navegando na Internet.
Por mais que tenha dado voltas, não encontrei um dia da semana que fosse absolutamente seguro. Os fantasmas cercaram nossa fortaleza, e só resta desejar que Clinton e o papa voltem sempre. Um dia, acabaremos achando a fórmula para expulsar as sombras da floresta. As queimadas e o desmatamento, por seu lado, talvez acabem antes com a própria floresta.

Texto Anterior: "A Sabedoria" é tema de debate no Tuca Arena
Próximo Texto: Mostra resgata a obra de Silvino Santos
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.