São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
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Empresa globalizadas trocam patrimônio por marketing

CÉLIA DE GOUVÊA FRANCO
DA REPORTAGEM LOCAL

O filme publicitário começa com meninos jogando futebol na rua. Logo essas cenas passam a ser intercaladas, de forma simétrica, com imagens de Ronaldinho jogando pela seleção brasileira.
Ronaldinho dribla um jogador, um menino dribla outro menino; Ronaldinho rouba a bola, o lance se repete com os meninos. Até que Ronaldinho faz um gol, e um dos meninos acerta uma bolada na janela de um carro, quebrando-a.
Uma típica cena brasileira usada para vender uma marca americana, a Nike? Mais do que isso, essa é a descrição de um anúncio criado por uma agência norte-americana, a Wieden & Kennedy, para vender no Brasil os produtos de uma empresa também norte-americana, a Nike, fabricados em um país asiático, como Vietnã ou Indonésia.
Com um faturamento de US$ 9,2 bilhões no ano fiscal terminado em maio de 1997, a fabricante de roupas e calçados esportivos Nike acabou se tornando, nos últimos anos, um dos melhores exemplos de uma empresa global, por sua estratégia de produção e de uso intensivo dos instrumentos de marketing.
A Nike não é dona de nem sequer uma fábrica, não emprega nenhum operário, não tem nenhuma máquina.
Toda a sua produção é feita sob encomenda em fábricas que pertencem a outras empresas, a partir de modelos de tênis desenhados por especialistas nos Estados Unidos.
Atualmente, cerca de 80% dos calçados Nike são feitos em fábricas de cinco países asiáticos: Vietnã, Indonésia, China, Coréia do Sul e Taiwan.
A empresa nunca teve fábricas. Por isso tem condições de mudar o local de fabricação dos seus produtos com enorme facilidade se julgar que é mais vantajosa a produção em outro lugar -o que não seria possível se tivesse investido na construção e na instalação de fábricas.
Nos últimos cinco anos, como resultado dessa política, a Nike desistiu de fazer negócios com 20 fábricas na Coréia do Sul e em Taiwan, países onde os salários dos operários subiram, e passou a operar com 35 novas fábricas na China, na Indonésia e na Tailândia, onde os salários são bem mais baixos.
Além dessa mobilidade, outra característica marcante de uma empresa globalizada que fica evidente na Nike é o investimento pesado em marketing.
"Nós não sabemos nada sobre indústria. Entendemos de marketing e design", explica Neal Lauridsen, vice-presidente da Nike para a região asiática, citado no livro "Global Dreams", de Richard Barnet e John Cavanagh, dois especialistas americanos em globalização.
Usualmente, a empresa -ou as companhias que a representam em um determinado país ou região- investe pelo menos 10% do seu faturamento na divulgação da sua marca, que se tornou tão conhecida que hoje é dispensável o nome Nike nas campanhas publicitárias. Bastam o slogan "Just Do It" e a logomarca.
Patamar
Empresas globais estão um passo adiante -ou muitos passos adiante- das multinacionais.
Existe muita polêmica entre economistas e cientistas sociais sobre as melhores definições para companhias multinacionais, transnacionais e globais, que variam conforme a posição, até política, de cada um sobre globalização.
Para Gilberto Dupas, consultor de empresas e especialista no tema globalização, haveria um certo consenso de que não há, de fato, diferenças entre o que é uma empresa multinacional e uma empresa transnacional.
A definição desses dois conceitos seria a de um agente econômico produtor de bens ou serviços, cuja base de produção esteja em mais de um país e/ou o mercado seja mais do que um único país, explica Dupas.
Já uma empresa globalizada ou global seria aquela que opera seguindo uma lógica operacional mundial, cujo objetivo seja maximizar benefícios e minimizar custos não importando onde esteja a base de produção e que obedeça uma estratégia de marketing única para todos os países onde vende seus produtos. Um exemplo disso seria a Coca-Cola, cita Dupas.
Para ele, ainda não existe nenhuma empresa brasileira que mereça o rótulo de global. "Um exemplo do que poderia ser uma empresa brasileira globalizada seria um fabricante de sapatos que vendesse seus produtos em um grande número de países e que os fabricasse onde os custos de produção fossem os menores. Seria uma Azaléa multiplicada por 10."
Outros especialistas diferenciam uma multinacional de uma transnacional. Um estudo recente da União Européia sobre a globalização da tecnologia e da economia, por exemplo, chega à conclusão que o que diferenciaria os dois conceitos seria o mercado alvo para seus produtos.
No caso de uma empresa transnacional, o mercado seria uma determinada região do mundo, como a Europa, enquanto para uma multinacional o mercado seria o planeta inteiro.
Uma característica essencial da empresa global atualmente seria a facilidade para identificar locais onde existam as condições mais atraentes para suas operações. Ficou muito mais fácil tomar conhecimento sobre as condições de trabalho em um determinado país e compará-las com a situação em outras partes do mundo.
Com os serviços de informação on line, por exemplo, o aumento nas taxas de juros adotado por um governo (que tende a encarecer os custos de produção e a favorecer as aplicações financeiras) chega ao conhecimento dos investidores e empresários de forma imediata.
Somada à crescente desregulamentação não só dos mercados financeiros, mas também em outras áreas, inclusive no que se refere à legislação trabalhista, ficou praticamente liberada a movimentação de capital, trabalho e bens entre os países.
O exemplo já clássico é, de novo, a Nike. Como a empresa não possui fábricas, não tem dinheiro investido em máquinas e imóveis nem emprega diretamente operários e gerentes das fábricas.
Qualquer tendência de elevação dos custos de produção em um determinado país pode levar a empresa a trocá-lo por um outro onde seja mais barata a fabricação dos seus calçados.
Um dos efeitos esperados da crise dos mercados financeiros das últimas semanas é um rearranjo de investimentos em fábricas, passada a rodada de aumento de juros e desvalorização de moedas. Investimentos previstos para um país poderão ser cancelados, por exemplo.
Nova onda de invasão
Como consequência da facilidade de mudar de um país para outro, nunca teria havido uma tendência tão forte quanto a atual de grandes grupos internacionais "invadirem" outros países e comprarem empresas locais ou de transferirem suas bases de operação de um país para outro.
Dados do PNBE (Pensamento Nacional das Bases Empresariais) mostram, por exemplo, que em 1996, na França, 3.400 pequenas e médias empresas foram vendidas. Nos Estados Unidos, ocorreram 10 mil operações de fusão e incorporação, movimentando mais de US$ 600 milhões.
No Brasil, no primeiro semestre deste ano, ocorreram 172 fusões, incorporações e joint ventures, segundo a empresa de consultoria KPMG Peat Marwick, indicando um aumento de 25% em relação aos seis primeiros meses de 1996.
"No circuito das chamadas empresas transnacionais, o investimento em fábrica deixou de ser privilegiado. A prioridade passou a ser investir em marcas. Muitas vezes, a empresa global compra uma companhia local apenas para ganhar uma fatia do mercado, por causa da marca", diz Helio Mattar, presidente da GE-Dako, a empresa formada no ano passado, quando o grupo norte-americano GE comprou uma participação majoritária na fábrica de fogões Dako, de Campinas (SP), líder de mercado.
Hoje, as empresas transnacionais ocupam uma posição ímpar nos negócios internacionais: 40% ou 50% do comércio global refere-se a operações entre essas empresas, cita Dupas.
O crescimento do número dessas companhias e dos negócios por elas realizados é apontado como uma das razões para a expansão do comércio internacional.
No início dos anos 80, o comércio mundial de bens e serviços girava cerca de US$ 5 trilhões ao ano; hoje, aproxima-se dos US$ 14 bilhões, diz o Banco Mundial.
Esses dados indicam que o comércio entre os países teve, nesse período, um ritmo de crescimento mais acentuado do que o da própria economia mundial.
Um fator decisivo pra que isso tenha ocorrido foram as mudanças nas regras do jogo comercial internacional com as negociações no âmbito do antigo Gatt (Acordo Geral de Tarifas e Comércio), na chamada "Rodada Uruguai", que resultaram em uma redução generalizada de tarifas (espécie de imposto de importação adotado pelos governos).
Condições de trabalho
O processo de expansão das empresas multinacionais também provocou polêmica por causa das condições de trabalho nas fábricas desses grupos instaladas em países que não se destacam pelo respeito aos direitos dos trabalhadores.
Nos Estados Unidos e na Europa, surgiram nos últimos anos movimentos de boicote a uma série de produtos de fábricas desses grupos instaladas em países que não se destacam pelo respeito aos direitos dos trabalhadores. A Nike foi um dos principais alvos desses movimentos.
As empresas, de seu lado, têm procurado desmontar -com maior ou menor grau de sucesso- essas críticas.
Recentemente, a Nike convidou uma ONG (organização não-governamental), a GoodWorks International, para fazer um levantamento sobre fábricas que fabricam seus calçados em três países asiáticos: Vietnã, Indonésia e China.
A GoodWorks apresentou suas conclusões: embora as fábricas apresentem condições de trabalho adequadas, "o conceito de 'direitos trabalhistas' não é bem entendido ou adotado nos três países onde a Nike e seus principais competidores produzem calçados e outros itens".
Em contrapartida, são os consumidores "que dão legitimidade à tendência de globalização, na medida em que querem, exigem mesmo produtos mais baratos e de melhor qualidade", afirma Dupas.
Muitas vezes é esse mesmo consumidor, no papel de trabalhador, que sofre com a política de empresas transnacionais de fechar uma determinada fábrica ou de promover demissões, alegando a necessidade de reduzir seus custos para aumentar a produtividade.

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