São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
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Globalização aprofunda o abismo entre ricos e pobres

JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO
DA REPORTAGEM LOCAL

Desde 1960, quando os ricos ganhavam 30 vezes mais que os pobres, a concentração da renda mundial mais do que dobrou. Em 1994, os 20% mais ricos abocanharam 86% de tudo o que foi produzido no mundo. Sua renda era 78 vezes superior à dos 20% mais pobres.
Esse é o lado menos conhecido da globalização. Ano a ano o fosso que separa os incluídos dos excluídos vem aumentando: os ricos ficam mais ricos, e os pobres, mais pobres. Em 34 anos, o quinhão dos excluídos na economia global minguou de 2,3% para 1,1%. A concentração chegou ao ponto de o patrimônio conjunto dos raros 447 bilionários que há no mundo ser equivalente à renda somada da metade mais pobre da população mundial -cerca de 2,8 bilhões de pessoas.
"Supõe-se que uma maré de riqueza levará todos os barcos. Mas alguns navegam melhor do que outros. Os iates e transatlânticos estão avançando, em função das novas oportunidades, mas as balsas e botes a remo estão fazendo água, e alguns afundam rapidamente."
É o que diz o Relatório da Organização das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Humano, de 1997. O texto faz um balanço dos efeitos da globalização sob a ótica dos perdedores: "Os países menos adiantados podem perder até US$ 600 milhões por ano, e a África ao sul do Saara, US$ 1,2 bilhão".
As causas apontadas pela ONU são várias: das barreiras alfandegárias mais punitivas às exportações dos países subdesenvolvidos às leis de proteção de patentes que dificultam o acesso das nações pobres a novas tecnologias.
O comércio mundial cresceu 12 vezes no pós-guerra e chegou a US$ 4 trilhões por ano nesta década. Mas foi também o vilão que mais acentuou as desigualdades entre países ricos e pobres no processo de globalização. Com 10% da população do planeta, os países mais pobres detêm apenas 0,3% do comércio mundial. Pior: é a metade do que detinham há 20 anos.
Para o conjunto dos países em desenvolvimento, a globalização impôs perdas comerciais de US$ 290 bilhões entre 1980 e 1991. Nesse mesmo período, o preço dos produtos básicos (sua principal exportação) caiu 45%.
Os mecanismos que deveriam minimizar esses impactos resultaram ineficientes. A Rodada Uruguai do Acordo Geral de Tarifas e Comércio "deixou intacta a maior parte da proteção da indústria e da agricultura dos países industrializados", diz a ONU. Os produtos exportados pelo Primeiro Mundo tiveram uma redução muito mais forte das tarifas que lhe eram impostas do que as exportações do Terceiro Mundo: -45% contra -20% a -25%.
Diante da perspectiva de diminuição, mesmo que apenas parcial, das tarifas alfandegárias, os países desenvolvidos acharam outros meios de proteger seus mercados. De 1989 a 1994, eles dobraram o número de barreiras sanitárias e medidas antidumping.
Ao mesmo tempo, reforçavam o dumping em seu próprio quintal. Em 1995, os países ricos gastaram nada menos do que US$ 182 bilhões em subsídios à agricultura -ou seja, metade do valor de tudo o que colheram.
Segundo a ONU, os subsídios dos ricos prejudicam o Terceiro Mundo de várias formas: 1) mantêm baixos os preços internacionais, desvalorizando as exportações dos países pobres; 2) excluem os pobres de vender para os mercados ricos; 3) expõem os produtores pobres à concorrência de produtos mais baratos em seus próprios países.
Há estimativas de que, se os países desenvolvidos reduzissem os subsídios agrícolas em 30%, os países em desenvolvimento ganhariam US$ 45 bilhões por ano.
Além do comércio, o fluxo internacional de recursos aprofunda as disparidades mundiais. Mais de 90% dos investimentos estrangeiros diretos vão para Japão, EUA, Europa e oito províncias da China.
Todos os demais países, com 70% da população mundial, ficam com menos de 10% dos investimentos. "Isso significa que regiões enormes do mundo estão ficando excluídas dos avanços tecnológicos", registra o relatório da ONU.
Com crédito reduzido, os países pobres pagavam até a década passada taxas de juros quatro vezes maiores do que as pagas pelos países ricos.
Com tantas desvantagens competitivas, a imensa maioria dos perdedores do processo de globalização tinha que estar nos países em desenvolvimento: quase 1/3 de seus habitantes (1,3 bilhão de pessoas) vive com menos de US$ 1 por dia.
Mas os perdedores citados no relatório da ONU não estão só no Terceiro Mundo. Cerca de 100 milhões de pessoas vivem abaixo da linha de pobreza nos países desenvolvidos. Em algumas dessas nações, como o Reino Unido, esse número tem crescido.
A quantidade de pobres nos países ricos varia de 3% da população, na Noruega, a 37%, na Irlanda. Os EUA ficam no meio do caminho, com 14%.
O fantasma que ronda suas economias globalizadas é o desemprego. As taxas subiram a níveis que não eram vistos desde os anos 30. Resultado: há cerca de 37 milhões de desempregados nos países desenvolvidos.
Os mais otimistas, como o consultor norte-americano Simon Forge -famoso por suas projeções sobre os impactos da revolução tecnológica nas comunicações e na economia-, dizem que a perda de empregos no Primeiro Mundo é a contrapartida da criação de postos de trabalho nos países em desenvolvimento.
Ele atribui isso ao fato de as nações emergentes estarem avançando na educação de seus habitantes -o analfabetismo caiu de 57% para 30% entre 1970 e 1994 nesses países- e terem custos de produção menores (inclusive salários).
"O resultado será menos empregos nos países desenvolvidos, enquanto os países em desenvolvimento crescerão em poder econômico nos próximos 20 anos", escreveu Forge num alentado estudo para o Banco Mundial.
Por essas e por outras, Jeremy Rifkin, autor do best-seller "O Fim do Trabalho", sustenta que a economia global está passando por uma transformação comparável à Revolução Industrial.
Em artigo recente para a revista "Mother Jones", ele escreveu: "Estamos nos primeiros estágios da mudança do 'trabalho em massa' para um altamente especializado 'trabalho de elite', acompanhada da crescente automação na produção de bens e serviços".
Rifkin calcula que, só nos EUA, cerca de 90 milhões de empregos (a força de trabalho norte-americana é de 124 milhões de pessoas) estão vulneráveis à automação.
Nesse ponto, o relatório da ONU concorda mais com Rifkin do que com Forge. O texto cita estudos que estimam que o impacto da concorrência com a mão-de-obra barata dos países pobres seja responsável por apenas 10% do desemprego industrial dos países ricos.
"A redução do gasto fiscal (dos governos) e a mudança tecnológica tiveram um efeito muito maior sobre o desemprego e a desigualdade", assinala o relatório.
Na direção oposta à seguida até agora pela globalização, o texto propõe seis políticas nacionais para os países tentarem distribuir mais equitativamente os benefícios da integração mundial.
Entre elas, sugere que os governos adotem critérios mais seletivos na hora de abrir as fronteiras à competição internacional, invistam na educação da população mais pobre e fomentem as pequenas empresas. Em paralelo, a ONU recomenda aos países em desenvolvimento que formem blocos econômicos regionais: "Eles podem aumentar o comércio, facilitar o fluxo financeiro e melhorar os meios de transporte".
A ONU ainda defende sete iniciativas em nível mundial para igualar as regras do jogo. Destacam-se a proposta de um mecanismo para controle e vigilância com mais agilidade da liquidez internacional, mudanças nas regras do comércio mundial em benefício dos países pobres e uma associação de empresas multinacionais para fomentar a redução da pobreza.
A última proposta se baseia numa constatação surpreendente: das 100 maiores economias do mundo, 50 são megaempresas. Como a GM, cujo faturamento em 1994 foi superior ao PIB de países como Turquia, Dinamarca e África do Sul.
É uma tendência em alta. Com as constantes fusões de gigantes empresariais, vai aumentar a importância das multinacionais, em detrimento dos Estados nacionais. E é por essa razão que já há quem prefira chamar a globalização de era da "englobação".

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