São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
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O regime contra os 'bossa-nova'

Continuação da pág. 5-9

ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

Tempos depois, um capitão convocou Caetano para um rápido encontro que, sob o olhar do compositor, consistia numa "versão refinada" do papo com o sargento.
Acompanhe a narrativa do livro: "(O capitão) referiu-se a algumas declarações minhas à imprensa em que a palavra 'desestruturar' aparecia e, usando-a como palavra-chave, ele denunciava o poder subversivo do nosso trabalho. Dizia entender que o que Gil e eu fazíamos era muito mais perigoso do que o que faziam os artistas de protesto explícito e engajamento ostensivo. Ambos (o capitão e o sargento) confirmaram uma tese que eu teria usado para valorizar politicamente meu trabalho perante meus opositores da esquerda".
Os bossa-nova
O primeiro documento do Deops que sugere outro raciocínio por parte do governo é de junho de 1965 (leia quadro à pág. 5-9).
Revela que os agentes da repressão investigavam Caetano desde aquele mês -portanto dois anos antes de o tropicalismo nascer.
Em 18 de maio de 1965, de acordo com o relatório, o cantor integrara o show "Evolução" no badalado teatro paulistano Paramount.
Reuniram-se lá, entre outros, os protagonistas de dois musicais célebres, o "Opinião" e o "Arena Conta Zumbi", que se converteram em marcos dos espetáculos de participação política.
O Departamento Federal de Segurança Pública, responsável pelo documento, classificava o "Evolução" como "mais um show dos chamados bossa nova".
Alertava que servia de "estímulo aos movimentos estudantis, de caráter nitidamente esquerdista". Também considerava que, das canções e diálogos do espetáculo, extravasava "um nítido sentido subversivo".
Apontava, em especial, a música "Carcará" -que, interpretada por Maria Bethânia e composta pela dupla João do Vale/José Cândido, insinuava "uma aberta luta de classes".
Recomendava, assim, que o "Centro de Operações" passasse a investigar o "comportamento político" de todos os que entraram em cena naquele 18 de maio.
A lista incluía, além de Caetano, nomes que, já em 1965, se ligavam diretamente à "arte engajada" (ou iriam se ligar logo a seguir): Chico Buarque, Edu Lobo, Dina Sfat, Lima Duarte, Gianfrancesco Guarnieri e Marília Medalha.
Como os futuros tropicalistas ainda estavam próximos dos "artistas de protesto explícito", os militares tendiam a jogar gregos e troianos no mesmo saco -o dos "bossa-nova". Uma postura generalizante que se repetiu três anos depois, conforme deixa claro outro documento.
A Mercedes azul
Produzido pelo serviço secreto do Deops, o relatório de 4 de março de 1968 começa tratando Caetano, Gil, Maria Bethânia e Nana Caymmi como "o grupo baiano".
Informa que, "de há muito", tais artistas "vêm cantando 'músicas de protesto', subliminarmente atacando o regime vigente e exaltando os regimes socialistas".
Os termos, como se vê, poderiam se aplicar perfeitamente a cantores da esquerda militante.
Ocorre que, a essa altura, Gil e Caetano já estavam à frente do tropicalismo. Tinham lançado, respectivamente, "Domingo no Parque" e "Alegria, Alegria". Mais: acabavam de gravar "Tropicália ou Panis et Circensis", o disco-manifesto do movimento que chegaria às lojas por volta de julho.
O mesmo documento aponta um fato também revelador do olhar pequeno que o governo reservava para os tropicalistas.
Conta que, no dia 1º de março, o então repórter Silvio Luiz, da rádio paulistana Jovem Pan, entrevistou Gilberto Gil. E fez perguntas sobre uma Mercedes azul que o cantor acabara de comprar (na realidade, o carro, modelo 1959, era verde).
Gil respondeu com ironia. Disse que a compra não deveria causar surpresa porque "na Rússia e em Cuba todo mundo pode ter Mercedes azul". O comentário irritou o serviço secreto e lhe deu margens para julgar o compositor como "homem de parcos ou nenhum conhecimento filosófico", que demonstrou "uma pretensão de erudição ou simplesmente ser adepto da doutrina esquerdista".
Por causa das palavras do cantor, o relatório recomendava "maior observação" sobre todo o "grupo baiano" -que tinha "à sua disposição a Televisão Record e a Rádio Pan-Americana, dois poderosos veículos de penetração".
Randal Juliano
O relatório informa que, em um programa de 4 de março de 1968, o radialista de São Paulo noticiou as declarações que o cantor dera para Silvio Luiz. Criticando-as, afirmou: "Em Cuba e na Rússia, há falta de alimento quanto mais de Mercedes e da cor azul".
"Não me lembro se fiz tal comentário", disse Juliano, 72, à Folha. "Devo ter feito, porque aquela frase representa o que penso."
O nome do radialista surge duas vezes em "Verdade Tropical". O autor do livro o menciona quando conta que, depois de estar preso há semanas, um major finalmente decidiu interrogá-lo.
Numa das sessões de perguntas, o militar abordou o "episódio da boate Sucata". Falava de uma série de espetáculos que Gil, Caetano e os Mutantes protagonizaram em uma casa noturna do Rio quase três meses antes da prisão.
"O show foi possivelmente a mais bem-sucedida peça do tropicalismo. Pelo menos, a que melhor expunha nossos interesses estéticos e nossa capacidade de realização", escreve Caetano.
"Eu (...) levava às últimas consequências o comportamento de palco esboçado desde 'Alegria, Alegria', estirando-me no chão, plantando bananeira e enriquecendo o rebolado cubano-baiano do 'É Proibido Proibir'."
"(O artista plástico) Hélio Oiticica, que involuntariamente dera nome ao nosso movimento, estava presente naquele próprio evento, com uma obra exposta perto do palco (...): sua homenagem ao bandido Cara de Cavalo, na forma de um estandarte em que se lia, sob a reprodução da fotografia do corpo do personagem, a inscrição 'Seja Marginal, Seja Herói'."
"Uma noite, um juiz de direito, que não sei por que cargas-d'água foi à Sucata ver o nosso show, indignou-se com o estandarte. (...) Sem embargo, conseguiu não apenas suspender o show como fechar a boate."
"A história da interdição da Sucata por causa da bandeira de Hélio correu de boca em boca e, possivelmente agarrado a essa palavra, 'bandeira', um apresentador de São Paulo, Randal Juliano, resolveu criar uma versão fantasiosa em que nós aparecíamos enrolados na bandeira nacional e cantávamos o Hino Nacional enxertado de palavrões."
"Esse sujeito era um demagogo de estilo fascista que cortejava a ditadura agredindo os artistas."
"Agora o major me informava que esse locutor tinha se dirigido explicitamente aos militares pedindo punição para nós, e que essa arenga havia surtido efeito sobretudo na Academia das Agulhas Negras. De lá teria saído a exigência de que nos prendessem."
Desde 1992, quando Caetano relatou a mesma história durante o programa "Jô Soares Onze e Meia", Juliano vem confirmando que criticou, sim, os tropicalistas na TV Record.
Mas que não inventou nada. Fez os comentários com base em informações da imprensa. "Não lembro onde li. Sei apenas que minhas críticas diziam algo como 'Gil e Caetano podiam gozar de tanta coisa e escolheram justamente o Hino do Brasil'. Sou nacionalista, sempre fui. E achei que tinha o dever de protestar."
O radialista afirma que, por causa dos comentários, recebeu uma convocação para comparecer à sede do Segundo Exército, em São Paulo. "Um coronel me perguntou: 'Você confirma o que falou na televisão?' Respondi que sim porque não costumo negar minhas opiniões. Foi só."
Papéis do Deops mostram que a voz de Juliano não ecoava sozinha -e que o coro que a engrossava também repercutia no governo.
Um relatório do Serviço Nacional de Informações, com data de 11 de outubro de 1968, alertava que Caetano quase sofrera uma "ação" de militares quando cantou "o Hino Nacional em ritmo tropicália".
O documento indica que o SNI soube do "incidente" pelo jornal paulistano "Folha da Tarde" que circulara em 10 de outubro. Quem consultar o diário encontrará, na página dois, uma pequena notícia com o título "Radicalização":
"Ontem, generais procuraram conter um grupo (de oficiais) mais exaltado que pretendia fazer uma expedição punitiva à boate Sucata a fim de 'justiçar' o cantor Caetano Veloso. Este, anteontem à noite, cantara o Hino Nacional em ritmo tropicalista com versos que constituem, para os militares, 'um atentado ao governo, às Forças Armadas e à nação'±".
Outro relatório, de 26 de novembro de 1968, elaborado pelo Segundo Exército, registra os ataques que um radialista de São Paulo lançara sobre Caetano por força de "seu comportamento numa boate do Rio, cantando o Hino Nacional em ritmo de bossa".
Qual o nome do locutor? Moraes Sarmento, hoje com 74 anos. Na semana passada, ele declarou à Folha: "Não me recordo especificamente daquela crítica. Mas nunca gostei do tropicalismo. Era um movimento oportunista".
O último relatório que a Folha localizou também faz alusão às "provocações" na Sucata. O Deops o redigiu em 11 de fevereiro de 1969, quando os baianos ainda estavam presos.
É, talvez, o que melhor exprime as dificuldades do governo para diferenciar as diversas correntes culturais do país. Ora diz que Caetano cantou o Hino Nacional em ritmo tropicalista, ora em ritmo de bossa nova. No cabeçalho, classifica o artista como "compositor e cantor de músicas folclóricas".

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