São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
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As variedades do "científico"

BRUNO LATOUR
ESPECIAL PARA A FOLHA

O que quer dizer o adjetivo "científico"? Pode-se compreendê-lo de pelo menos três formas diferentes, que é preciso distinguir cuidadosamente. No sentido número um, "científico" é uma forma de discurso que permite curto-circuitar o discurso público, a conversa popular, a lengalenga mundana, os rumores ociosos, o mostruário indefinido da subjetividade. Nesse primeiro sentido, dizer de um dado qualquer que o mesmo é "científico", quer dizer que nada mais existe para discutir. Qualquer coisa atravessa o meio da vida comum e tentar detê-la é tão inútil quanto tentar parar um trem-bala que cruza um pequenino povoado.
No sentido número dois, o mesmo adjetivo "científico" quer dizer quase exatamente o oposto: entidades novas sobre as quais jamais se falou começam a formar um universo de discursos novos no interior das comunidades científicas de origem, quando do uso de dispositivos experimentais novos. Essas entidades, longe de calarem a boca e de curto-circuitarem a discussão, tornam, pelo contrário, perplexos os cientistas e aqueles aos quais se dirigem.
Reflitamos sobre os príons, essas pequenas proteínas, justamente ditas "não-convencionais", que acabam de ser responsabilizadas pela doença da "vaca louca". Candidatos à existência, os fatos que os contêm não têm ainda a potência de um trem-bala. Longe de interromperem toda discussão, eles, bem pelo contrário, complicam-na, como se pôde constatar na época desse imenso quiproquó que pôs em perigo todo o mercado europeu de carnes, como também todo o sistema de vigilância veterinária.
Mas existe ainda um terceiro sentido, ao qual nos referimos sem pensar quando dizemos que um fato é "científico". Quer-se dizer no caso que existem, por trás do enunciado, um monte de provas, de cifras, de data, que podem ser mobilizados em caso de dúvida. Enquanto o primeiro sentido remete principalmente ao indiscutível, e o segundo, à novidade e à perplexidade que ela engendra, esse terceiro sentido tem a ver principalmente com o que se poderia chamar logística. Se se pretende construir um mapa geológico do Brasil, será necessário coletar, classificar, gerenciar, sintetizar, reformatar centenas de milhões de dados primários. Existe no caso um problema administrativo que resulta essencialmente da própria quantidade daquilo que é necessário poder manipular.
Notemos que um enunciado pode ser científico nesse terceiro sentido, sem sê-lo no segundo, exatamente pela mesma razão que um exército pode ter uma excelente logística, mas nenhuma estratégia. Inversamente, um enunciado pode ser científico no segundo sentido -entidades novas complicam as opiniões apressadas que se entretinham até então- sem ser ao mesmo tempo científico no terceiro sentido do termo -nenhuma massa de dados apóia as tais entidades, como é frequentemente o caso nos avanços teóricos, em certas áreas das ciências de observação, em grande parte das ciências humanas e em quase todas as humanidades.
Ao aplicar o adjetivo "científico", faz-se apelo a três repertórios de ação que praticamente não se relacionam e que só a história misturou.
O primeiro sentido tem origem em uma longa guerra contra a política, lançada pelos gregos e perseguida até hoje: uma vez que se acha o discurso político muito vagaroso, distorcido, complexo, mentiroso, procurou-se simplificá-lo apelando para enunciados que teriam a capacidade de calar para sempre os contrários e suspender todo debate (1). Mas esse primeiro sentido, o da epistemologia, nunca se casou bem com o segundo, que permitiu tanto às sociedades antigas como às industriais multiplicar as entidades com as quais os seres humanos devem dividir seu destino. Enquanto o primeiro sentido permitia limitar o uso da democracia a um resíduo, o segundo, pelo contrário, obriga a ampliá-la de saída, de modo a poder absorver as incessantes controvérsias que dizem respeito às alianças variáveis entre humanos e não-humanos. Quanto ao terceiro sentido, de origem bem mais recente, depende da "demografia" desses novos coletivos obrigados a manter juntas quantidades cada vez maiores de associados -humanos e não-humanos (2).
Acredito que toda discussão sobre as relações entre ciência e política é proveitosa, desde que não se confundam esses três significados.

Notas:
1. Barbara Cassin, "L'Effet Sophistique", Gallimard, Paris, 1995;
2. Theodore M. Porter, "Trust in Number - The Pursuit of Objectivity in Science and Public Life", Princeton University Press, Princeton, 1995.

Tradução de Jesus de Paula Assis.

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