São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
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Sem mentira não se vive

GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

À leitora amiga mais do que ao amigo leitor devo aqui abrir o jogo: estou sem ouvir música popular brasileira ou estrangeira quase há 20 anos. Malgrado essa idiossincrasia acústica (fobia? esquisitice? lucidez?), a Folha convidou-me a resenhar a memória publicada pelo senhor Caetano Veloso em vida -um baita calhamaço de 500 páginas!
Descontado o traço psitacídeo dessa autobiografia pedante, dir-se-ia que é o Marcel Proust vindo ao mundo numa forrada biblioteca em Santo Amaro da Purificação, a Rosebud baiana sem saneamento básico. O "star pop intelectual" escreve com veleidade rui-barbosiana de ser vertido para o inglês, de olho numa vaga na Academia Brasileira de Letras, misturando a retórica passadista de Machado Penumbra com o homem que sabia javanês. Trata-se de um macumbão pop(udo) para turista. Tudo aí é pop: Sartre, Chacrinha, Duda, Nando. Só faltou Collor, popíssimo.
"Verdade Tropical". Título horrível, solene, pretensioso, metido, dando a impressão falsa de que se trata de um logos acerca do trópico úmido ensolarado, quiçá concebido por um mulato sociólogo na varanda videofinanceira da Casa Grande, espécie de aletheia de araque (o negro não é a base da cultura popular) que a mim não me causa espanto algum, pois o romancista Chico Buarque de Holanda já foi alçado à categoria de sucessor do mestre Machado de Assis. Midiologicamente, a literatura brasileira (incluindo a universidade) dançou com o triunfo totalitário-mercadológico da canção e da telenovela, duas esferas diabólicas cada vez mais indiferenciáveis: a telecanção privada internacional. Diante dessa deplorável política cultural contra a emancipação do povo brasileiro, justifica-se o inútil desabafo: a bosta mental, como dizia Oswald, vai continuar enquanto Roberto Carlos, antonomásia de todos os compositores populares a partir de 1965, fizer sucesso na roça e nas capitais.
Se FHC é o marechal Castelo Branco da sociologia com pescoço, então o pseudomagister Chaetano (grafado assim porque seu calhamaço mal escrito dá no saco) é o Juracy Magalhães pop-odara, quando coloca de modo safado o dilema ocidentalização capitalista ou liberdades democráticas -ou senão nacionalismo como sinônimo de "fechamento do país à modernidade". A áulica Capitu tucana de 1997 já estava lá nos corredores do Solar da Fossa.
Mneumosyne Jabaculê. Memória Jabaculê. De suas páginas prolixas está ausente aquilo que não poderia nunca faltar em se tratando de quem é: dinheiro. Assim, faltando o demiurgo da grana ("Como nunca pude me interessar por dinheiro"), o que porventura houver de biograficamente dionisíaco aí soa como glossolábia mistificada acerca do tesudo corpo transido de amor 24 horas por dia, fogoso simulacro de que o grande barato do aedo cantante é amar, amar demais, morrer de amar, não importando se o apê do sexo é macho, fêmea, bicha ou travesti. Nesse hedonismo falastrão, menos ecumênico do que vicário e comercial, a idade (ou a conta bancária) assume importância crucial: aos 20 anos a dicção oral é tudo, mas eis que chega finalmente a exigência da escrita com pijama calvinista e maturidade contábil católica, aí então surge a hora do marketing da memória, cujo tamanho -vá lá o sorriso da comparação exagerada- por pouco não excede a do octogenário Roberto Campos. Estranha coincidência a derradeira convergência entre a aventura tropicalista e o discurso antierótico das ciências sociais que tomaram o poder através do Weber da moeda.
Afinal, o que é verdade tropical? Saudade da República Velha? A tropicália identifica maliciosamente folclore com autoritarismo político, fato esse que explica não apenas a rasteira dada no nacionalismo do crítico José Ramos Tinhorão, nosso Walter Benjamim da epifania fonográfica, como também é a causa do estilo chiquita bacana niuliberal que se apossou do Palácio da Alvorada no ano de 1994.
Parafraseando Hegel: a MPBXéu governa o Brasil. O mapa tropicalista de direita surge nítido a nossos olhos de hoje: má-fé acerca do golpe de 64 (a favor da derrubada de João Goulart, mas contra a ditadura militar), interpretação maledicente e reacionária de Glauber Rocha como artista suicida (por que não indagar quem foi entre nós o seu assassino mítico?), desqualificação esnobe e imbecil do folclore, defesa mercenária da TV monopolista, rasgação de seda em cima do pusilânime Miguel Arraes pré-64 em detrimento da práxis de Leonel Brizola, utilização sacana e anfibológica do "populismo", agitprop publicitário e multinacional da Coca Cola etc.
Para quem embarcou (geração de 68 e outras subsequentes) no suposto pansexualismo libertário dos tropicalistas, vale a pena saborear a descrição antológica do fascínio erótico irradiado pelo corpo do compositor Toquinho, "cujas pernas e braços de matéria compacta e pele morena homogênea faziam surgir de vez em quando em minha mente uma alegre e vaga promessa homoerótica". Meu Deus, Georges Bataille treme na tumba junto com o Marquês de Sade!
Ao prendê-los, os milicos equivocados fizeram a mídia de Caetano & Gil. O ódio canibal ao cineasta Glauber Rocha é o personagem principal em foco (muito mais do que João Gilberto), cuja aparição fantasmática na prosa pilantra de Caetano Veloso está invariavelmente conectada à imagem de "mão pesada" e "canhestra", valendo má sorte, urucubaca, martírio, destino masoquista, fanático, louco, enfim, bode preto.
A inveja da patota MPB é que o romântico Villa-Lobos ouviu como ninguém o desejo do povo.
Fazendo uso pragmático de seu orelhão bicador, Caetano não perdoa a falta de conformismo e de irrealização argentária no gênio dissonante de Glauber Rocha. Odiado pela tropicália, o romantismo é a crítica ao dinheiro. Por não tê-la em dose suficiente, o frívolo Caetano Veloso maltrata postumamente a paixão glauberiana pelo Brasil, psicologizando-a em excesso e de modo antiestético.
Antes de rascunhar o discurso de posse de Fernando Collor, o diplomata José Guilherme Merquior percebeu que a prosa ex-tropicalista apresentava um perfil misólogo, ou seja, refratária ao estudo e à escola.
Merquior sacou o segredo da década de 70: a pós-tropicália é antieducação. Ou, digamos assim, desse quadro absurdo: o poeta é anti-Cieps no palanque da sociologia. Nos últimos 30 anos o processo ascensional do compositor popular na cultura brasileira reduziu a didática a um domínio careta, arcaico e assexuado. Simbolicamente, a professora duranga é descartada pela abonada starpopmiuziqui, para quem a musa do cabaré infantil baba no brinquinho nova-iorquino do moderno jornalista televisivo. Enfim, salve a chegada do intelectual ao poder com Gilberto Gil no papel de Ivete Vargas.
Na passagem demorada (60, 70, 80 e 90) do homo loquens juventude para o homo scribens maduro se interpõe, antes ou depois do póstumo cinema glosado, a terceira via do homo telenovelicus. Este é o que decide o charme e a dialética da malandragem, através do lobby da gasolina com o Banko.
Em sua birra maluca meio PFL e aceemizada contra a Kulturkritik deglutida por nós na Vila Madalena, José Guilherme Merquior esculhambou a ideologia hegemônica nos cursos de letras e ciências humanas: a "taradez textual" é libido grafocrática.
Merquior errou nesse diagnóstico estruturalista, embora tivesse acertado na recusa do qualificativo intelectual ao compositor popular: meu amor, verdade tropical mora é na telenovela da Rede Globo.
Na década de 70, a música popular deu maior força para a hipertrofia ágrafa da indústria cultural televisiva, o principal entulho vivo legado pelo golpe de abril de 1964.
O fato concreto é que a superestrutura tropical faz um barulho do inferno. Essa compulsão ampliada do ruído eletrônico ganha um status mágico e boçal de princípio ordenador da conversa cotidiana, sempre acompanhada pelo muzak da fonomelopéia que exerce fascínio em todas as camadas da população, tal qual acontece com a gritaria histérica da Igreja Universal do Reino de Deus.
Embora o sentimento veiculado pela cantoria tropical seja de conteúdo misógino, as moças e senhoras -com Nietzsche ou Giannotti na cabeça- tendem a sobrevalorizar a energia vital do compositor popular, na exata medida em que atribuem ao cineasta Glauber Rocha gnose autofágica, aniquilamento suicida e vocação ao fracasso.
Folclore é divisor de águas, pois com a morte de Villa-Lobos houve o eclipse do nacionalismo e a emergência da bossa nova e, mais tarde, da tropicália. A cidade de São Paulo, ponta de lança do imperialismo norte-americano, sacramentaliza o tombo que a tropicália baiana deu no nacionalismo brasileiro, inclusive no sol como reator energético do Terceiro Mundo.
Vale guardar o seguinte detalhe: enquanto Villa-Lobos é a favor da escola com canto orfeônico, a tropicália sacaneia o professor, assim como o neoliberalismo da década de 90 prefere a mídia televisiva à escola. Interessante é que Glauber Rocha definia seu Kinema épico-didático.
Em Villa-Lobos, o lugar proeminente da escola convive com seu pendor boêmio chorão. A música em Villa-Lobos é uma índia gigantesca, defendeu Piedade Carvalho em sua tese de doutorado. Folclore villa-lobiano amoroso indígena. Do piano-mãe à tia-cravo. A calçada. A cirandinha. A colombina. O devaneio. O fogo triturado na gema gelada.
Para não dizer que é provocação, insisto novamente que o ocaso do nacionalismo na cultura brasileira acarretou a hegemonia do pênis e do ânus, por conseguinte o sequestro anímico-espiritual da xoxota, sendo no entanto condescendente com a mais-valia da vagina dentata como puro valor de troca do virago, ou seja: o lugar midiático da mulher é o que marca a diferença entre cinema e MPB.
Quem não seduz o gosto das mulheres não obtém sucesso no mercado; todavia a opção da mulher pela música popular nem sempre é feminina.
Por causa da prisão em 1969 Caetano aproveita para tirar onda de rebelde, considerando seus companheiros tropicalistas "os mais profundos inimigos do regime". Mentira. Depois do proprietário da Rede Globo e do atual presidente da República, o cantor tropicalista talvez tenha sido o grande beneficiado do golpe de 64. Não é por acaso que ele subestima o papel da CIA nos idos de 64, assim como acha o marechal Castelo um cara bonzinho e "sensato". Galinha dos ovos de ouro da tropicália, São Paulo pode agora tirar o tapete do Caetano sampabá (Serjão e ACM), porque em seu livro pefelê os paulistas (os mais cultos e lidos de quem ele se aproveitara no passado) são tratados por ingênuos e otários.
Esteticamente o que venceu foi o Brasil da Carmen Miranda sem medo de ser feliz. Antes do cardeal João Gilberto suceder ao maestro Villa-Lobos, em 1959, Luís da Câmara Cascudo já dizia que o verdadeiro não é popular.

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