São Paulo, quinta-feira, 6 de novembro de 1997
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Machado de Assis faz narrativa em ziguezague

FRANCISCO ACHCAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

O romance "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1881) representa um marco decisivo tanto no desenvolvimento da obra de Machado de Assis, quanto na evolução da literatura brasileira.
Tido como nosso primeiro romance realista, ele é bem mais que isso: é a primeira narrativa fantástica do Brasil e a primeira obra da literatura brasileira que ultrapassa os limites nacionais, pois é um grande romance universal.
Brás Cubas, o narrador, está morto, e é dessa perspectiva extraordinária (daí o caráter fantástico do livro) que ele nos relata sua vida e nos dá um quadro de sua classe social e do mundo em que viveu, tudo num estilo ziguezagueante, com o à vontade de um morto caprichoso e debochado, sem qualquer compromisso com os formalismos da vida -seja os formalismos das relações sociais, seja os da narrativa literária.
O livro é imensamente divertido e pode-se lê-lo, com prazer, de diversas formas e com diversos interesses: seja pelo gosto da história, contada com comicidade e irreverência; seja pela forma da narrativa, cheia de surpresas e desenvolvida (ou desmontada) por meio de um vaivém constante (começa pela morte do protagonista, pula para o seu nascimento e prossegue com muitos saltos); seja ainda pela representação corrosivamente irônica de um mundo social parasitário (a "alta sociedade" do Segundo Império), mundo do qual o narrador -um completo parasita- é o perfeito representante.
Por trás de tanto bom humor, contudo, está uma perspectiva desencantada (o famoso pessimismo machadiano) que, desvendando estruturas ocultas ou pouco visíveis daquela sociedade (assim como as do livro que está sendo escrito), deixa aparente o esqueleto que suporta as formas da vida (e as da arte).
A posteridade das "Memórias Póstumas" é brilhante como o próprio livro. Por um lado, o estilo desse romance marcou para sempre a obra de seu autor, que a partir dele escreveu, além de contos admiráveis, mais quatro grandes romances, todos, como as "Memórias Póstumas", compostos em capítulos curtos, todos (menos "Quincas Borba") narrados em primeira pessoa por um narrador "volúvel" (como o chamou Augusto Meyer), e todos substancialmente ambíguos em relação a elementos básicos da história.
Por outro lado, o impacto do livro na literatura brasileira fez-se notar, para além da influência difusa de Machado, numa obra capital de nossa modernidade literária, um outro romance satírico que já no título rende homenagem à obra-prima machadiana: "Memórias Sentimentais de João Miramar" (1924), de Oswald de Andrade.

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