São Paulo, quinta-feira, 6 de novembro de 1997
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Os males do Brasil

OTAVIO FRIAS FILHO

Aprendemos com os historiadores que o pecado original do Brasil não foi a suposta indolência dos trópicos, nem o peso sufocante do catolicismo ibérico, nem nossa vinculação a uma metrópole decadente já no século do Descobrimento, nem o caráter predatório do modelo agroexportador que ela implantou aqui.
Esses fatores contribuíram para deformar o desenvolvimento, mas a verdadeira chaga foi a escravidão. Todos os esforços para uma efetiva modernização do país consistem, até hoje, em superar esse legado que corrompeu senhores e cativos, depreciou o valor do trabalho, inviabilizou a cidadania plena e destruiu nossa auto-estima.
Mais de meio milhão de pessoas morreram na Guerra Civil americana (1861-65). Lincoln violou a Constituição várias vezes durante o conflito, desde logo quando impediu que o sul exercesse, em relação ao norte, o mesmo direito de autogoverno que os americanos se asseguraram, um século antes, em face da Inglaterra.
O que distingue Lincoln dos demais açougueiros e golpistas da história é que a sua decisão temerária não apenas manteve a unidade territorial, mas permitiu que os Estados Unidos purgassem seu trauma escravista em cinco anos, ao passo que o nosso continua a exercer seus efeitos deletérios de maneira constante e sub-reptícia.
Dedicado ao período imperial, o segundo volume da "História da Vida Privada no Brasil", recém-lançado, reúne uma série de ensaios que tratam da escravidão nas suas formas cotidianas. O espaço disponível aqui não comporta uma resenha do livro, aliás extenso no tratamento de um período focalizado em detalhe e pelo avesso.
Não interessam os "grandes" e sim os pequenos fatos, o que dá à leitura um sabor quase literário e permite ao leitor conhecer uma outra história, oculta sob a pompa do ensino escolar. Flagramos os mecanismos íntimos da sociedade em ação; vemos o presente emergir daquele passado tornado próximo pelo tom cotidiano.
Rara vez a escravidão encontrou defesa moral, a justificativa era sempre econômica. O incremento da crítica moral, aliada à expansão da economia de mercado, foi impondo restrições: ao tráfico marítimo (1850), à separação de cativos reunidos por parentesco (1869), à escravização dos filhos de escravos (1871).
A concessão frequente de alforrias, facilitadas pela grande oferta a preços baixos, especialmente antes de 1850, era uma estratégia para manter os cativos disciplinados, na esperança daquele "prêmio". Em 1872, quando foi feito o censo do Império, nada menos que 41% da população livre já era formada por negros ou mestiços.
Isso explica, por exemplo, por que o preconceito racial não se cristalizou, dissolvido no preconceito social, ou por que Machado de Assis, embora mulato, não teve maior dificuldade para ser reconhecido em vida como o maior escritor de uma sociedade escravocrata. Compreender o passado ainda é a melhor forma de mudar o futuro.

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