São Paulo, domingo, 9 de novembro de 1997 |
Texto Anterior |
Próximo Texto |
Índice
A lebre
MARIO VITOR SANTOS "Levantei a lebre, cabe a você dar uma investigada". Assim, em tom de desafio, terminava a mensagem eletrônica enviada ao ombudsman pelo leitor João Linneu do Amaral Prado Filho, no dia 17 de fevereiro passado.A "investigada" sugerida por Prado Filho resultou no caso de resolução mais demorada dessa minha gestão. Até hoje, a Folha não corrigiu o erro publicado. O leitor apontava erro na coluna "Lanterna na Popa", do deputado Roberto Campos, publicada aos domingos na Folha, em "O Globo" e outros jornais. Na epígrafe do texto, que circulara em 16 de fevereiro, o deputado e ex-ministro atribuía ao escritor argentino Jorge Luís Borges o seguinte texto: "Si pudiera vivir novamente mi vida, en la prójima trataría de cometer más errores. No intentaría ser tan perfecto, me relajaría más". Dizia o leitor em sua mensagem eletrônica: "É muito difundido no Brasil um texto, chamado 'Instantes' e atribuído a Jorge Luís Borges; sendo que o seu início é justamente a citação utilizada pelo sr. Roberto Campos. Também lembro-me, por pessoas especializadas em JLB, que tal texto não tem a qualidade dos de Borges e que nunca foi escrito por ele. Levantei a lebre..." Pesquisa Após receber a mensagem, entrei em contato com o professor Davi Arrigucci Jr., crítico literário e professor de literatura. Ele se lembrava de ter lido, na própria Folha, um artigo do escritor Moacyr Scliar sobre o assunto. Telefonei para Scliar no Rio Grande do Sul. O escritor contou a incrível história de "Instantes". O texto, escrito na forma de um poema, chegou-lhe às mãos num congresso de saúde pública, em 1987, em Rosario, na Argentina. O escritor já o tinha visto afixado em vitrines da cidade. Scliar transcreveu-o no jornal "Zero Hora", com grande repercussão. Surgiram cópias, que ele encontrava penduradas em "lugares os mais variados, casas de amigos, restaurantes, repartições públicas". Auto-ajuda Tempos depois, num encontro com a viúva de Borges, Maria Kodama, soube que a verdadeira autora do texto seria a norte-americana Nadine Stair. Indignada e disposta a contestar a suposta autoria de Borges, Kodama chegou a recorrer ao Ministério da Cultura argentino, sem sucesso. A viúva de Borges teria movido uma ação judicial contra a revista "Uno Mismo", a primeira a atribuir falsamente o texto a Borges, em 1986. O fato é que o "poema" ganhou o mundo, em livros de auto-ajuda, quadros, toalhas, lembranças de todo tipo vendidas em lojas de beira de estrada. A história de Scliar coincidia com o texto "A fragilidade da falsificação", que ele escrevera para a própria Folha no final de 1995. Tom Com base nesse relato, o caso foi encaminhado à Redação no dia 19 de fevereiro. A resposta veio em 14 de março. Em geral, é de até uma semana o prazo estabelecido com a Redação para as respostas aos leitores, sendo que há manifestações que merecem decisão imediata, levada a cabo na edição seguinte. Dizia a resposta da Redação, em tom peremptório: "A citação consta nas obras completas de Jorge Luís Borges. Está publicada lá. A discussão se o texto é apócrifo ou não... não cabe à Folha responder". Não é incomum receber respostas desse tipo. Nesses casos, descarta-se o suposto erro. Evita-se o reconhecimento. O tom é definitivo, duro, seco. A atitude é compreensível: a falha é computada, pode causar incômodos profissionais, influir na avaliação do jornalista envolvido; a carga de trabalho é muito grande, os envolvidos têm outras atribuições a preencher. Mas, no caso, o autor do erro não era funcionário da Folha. Era um jornalista, político, um prócer do ultraliberalismo, um personagem polêmico, quase intocável. Apesar disso, não havia razão objetiva para que a correção não fosse feita com rapidez. Barcelona Dispus-me, então, a consultar as "Obras Completas" de Borges, desejava apresentá-las à Redação. Consultei livraria de obras em castelhano, para encomendar os quatro volumes, mas o preço não era nada convidativo: R$ 70,00 por volume. A oportunidade surgiu na viagem para o reunião anual da ONO (Organization of News Ombudsmen). Numa cidade como Barcelona, em que se tem a impressão de existirem tantas livrarias como padarias há em São Paulo, não foi difícil encontrar os livros pela metade do preço daqui: R$ 35,00. Deu para comprar até um outro volume mais grosso com tudo que Borges produziu em parceria com outros autores. De volta, a primeira providência foi pesquisar os livros. "Instantes" não existe nas obras completas de Jorge Luís Borges. Em 13 de junho, pedi à Redação que apontasse nas "Obras" o poema que ela dissera existir ali. Coloquei os catataus à disposição para consulta. A resposta, em 1º de julho, veio em tom diferente, quase oposto, ao da anterior: "Nesse caso, a única pessoa que poderia responder é o próprio Roberto Campos. A secretária dele, Neide, já foi acionada várias vezes ... e não deu resposta ainda. Ela disse que falaria com o Roberto Campos até sexta da semana passada e foi cobrada ontem sobre o caso novamente. Respondeu que RC está muito ocupado e que ainda não tinha obtido resposta... Mas o fato é que o caso se arrasta há meses e não há resposta de que teria cometido o suposto erro. Estará sendo cobrada novamente". Labirinto Em 21 de julho, pouco mais de seis meses depois do erro, à falta de novas informações da Redação, sugeri a publicação de uma correção que reconhecesse a falha apontada pelo leitor Prado Filho e restabelecesse a verdade. Pedi uma decisão final a respeito. Após sua própria consulta às "Obras Completas", a Redação solicitou que eu formulasse uma sugestão de texto para o Erramos a ser publicado. A sugestão foi enviada em 28 de agosto. Até a sexta-feira passada, o "Erramos" não fora publicado. O assunto não é de importância transcendente. Os rumos do país e do mundo não se alteraram em consequência do erro. Importa mais saber por que há tanta dificuldade para essas correções no meio jornalístico. Mesmo sendo a Folha a publicação que introduziu a correção de erros em escala industrial, ela ainda o faz com relativa timidez. Já foi dito que, quanto mais importantes são os erros, maior é a dificuldade de reconhecê-los e corrigi-los com o destaque adequado. A ligação de "Instantes" a Borges talvez tenha razões profundas. Em seu texto de dezembro de 1995, Moacyr Scliar escreve que "Instantes" traz uma expressão de sabedoria acessível a todos, a derradeira manifestação de um grande escritor: "Borges, a lenda, supera Borges, o autor". A tentativa de correção do erro na Folha parece repetir os labirintos de Borges, inapelavelmente ligado à autoria do texto. É possível aperfeiçoar a publicação de correções na Folha, de modo a facilitar o reconhecimento dos erros e sua correção rápida e proporcional. Em condições normais, o jornal ganha confiabilidade não apenas porque erra menos, mas talvez por ser o que se dispõe a corrigir os erros mais importantes com o destaque, a clareza e a presteza que a própria informação incorreta impõe. Talvez fosse mais adequado premiar -e não punir- os que se dispõem a reconhecer e corrigir com transparência os erros a que os leitores foram expostos. Texto Anterior: Bancas trazem filme com Raul Julia Próximo Texto: Economia ameaça lua-de-mel de FHC e Menem Índice |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |