São Paulo, domingo, 9 de novembro de 1997
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Livro de Alan Sokal deixa Paris em chamas

BETTY MILAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na primavera de 1996, a comunidade acadêmica americana mal se deu conta de um artigo publicado na "Social Text", umas das revistas mais conceituadas dos EUA e conhecida pela particularidade de combinar posições de esquerda com influências da filosofia pós-moderna.
Assinado por Alan Sokal, professor de física na Universidade de Nova York, o texto levava o enigmático título de "Atravessando as Fronteiras - Em Direção a uma Hermenêutica Transformativa de Gravidade Quântica".
O artigo só veio a ganhar repercussão quando seu autor revelou, meses depois, em outra revista, que realizara na verdade um grande embuste.
No texto "Um Físico Faz Experiências com Estudos Culturais", para a revista "Lingua Franca" (de maio-junho de 1996), Sokal esclareceu que fizera propositadamente uma paródia, sem pé nem cabeça, de certa linguagem "pós-moderna" e "relativista", que recusa a possibilidade de se alcançar um conhecimento objetivo das coisas.
O que ele realizara fora uma colagem de dados científicos verdadeiros com citações de obras de filósofos pós-modernos franceses, como Guattari, Deleuze e Derrida, e americanos, como Sandra Harding, sobre física e matemática -e por ele consideradas duvidosas.
A revelação caiu como uma bomba nos meios universitários dos EUA.
Depois de chegar às páginas do "The New York Times", a polêmica rapidamente tomou corpo e extrapolou as fronteiras dos EUA.
Chegou inclusive ao Brasil, onde o economista Roberto Campos, em artigo na Folha de 22/9/96, elogiava Sokal por revelar "a submissão da idéia à ideologia" no pensamento das esquerdas.
O próprio Sokal retrucaria a Campos (Folha, 06/10/96), dizendo que suas críticas se dirigiam apenas a uma parcela da esquerda, e que se considerava ainda um pensador de esquerda.
Agora, com o lançamento no mês passado do livro "Imposturas Intelectuais", em parceria com o físico belga Jean Bricmont, Alan Sokal volta à carga.
Tachados de "censores" pelo semanário francês "Le Nouvel Observateur", Sokal e Bricmont tentam mostrar no livro como os conceitos de ciências exatas que aparecem em escritos de Jacques Lacan, Jean Baudrillard, Julia Kristeva, Deleuze e Guattari, entre outros, não tem rigor científico algum e chegam a ser absurdos.
Na França, o assunto suscitou um dos mais vivos debates dos últimos anos, além da indignação de boa parte da "intelligentsia" francesa.
Na entrevista abaixo, concedida com exclusividade à Folha no Hotel des Grands Hommes, em Paris, Sokal e Bricmont tecem suas considerações sobre as "imposturas" do celebrado pensamento pós-moderno francês.
*
Folha -Por que o sr. escreveu a paródia para a "Social Text"?
Alan Sokal - Ela se insere num contexto político. Eu me considero de esquerda porque me oponho à distribuição de renda atual. Constatei que certas tendências da esquerda acadêmica norte-americana adotaram o relativismo, ou seja, a idéia de que o conhecimento mais ou menos objetivo do mundo natural e social não pode existir, de que todo conhecimento é subjetivo. Até as ciências naturais não passariam de mitos. Opus-me a isso, pois acho que tais opiniões estão baseadas em erros e são politicamente suicidas. Nossa tarefa, se quisermos progredir, é elaborar uma análise da sociedade atual baseada no rigor, nos fatos, em uma análise convincente.
Folha - E por que o sr. recorreu à tática de escrever uma paródia e só depois revelar o que fizera?
Sokal - Constatei que nas universidades americanas os departamentos de literatura, ciências sociais e estudos femininos são fechados à crítica vinda do exterior e mesmo de dentro do país. A resposta é sempre a mesma. Ou bem ninguém responde. Por isso, tive a idéia de escrever uma paródia.
Folha - A Folha noticiou o fato, e o sr. foi até mesmo elogiado pelo economista Roberto Campos.
Sokal - A relação entre as posições intelectuais e as posições políticas é complexa. Fomos apoiados por pessoas de esquerda e direita por idéias que não são de ordem política. Como você deve saber, escrevi uma resposta a Roberto Campos dizendo que não ridicularizava a esquerda inteira, mas apenas uma parte, e que fora apoiado pela maior parte da esquerda americana, quase 80% das revistas.
Folha - A impostura é para o sr. "o abuso reiterado de conceitos provenientes das ciências físico-matemáticas", e o abuso se define por muitas características, entre as quais "falar abundantemente de teorias científicas sobre as quais o sujeito só tem uma vaga idéia". Faz supor que se tem um conhecimento que não se tem. Ao mesmo tempo o sr. escreveu: "Claro que nós não somos competentes para julgar o conjunto da obra dos autores" (Lacan, Kristeva...) e que "nós tentaremos explicar em que consistem os abusos cometidos no que diz respeito às ciências exatas e por que eles nos parecem sintomáticos de uma falta de rigor e de racionalidade no conjunto da obra". Em outras palavras, o sr. afirma que não é capaz de julgar o conjunto, porém julga. Não se trataria também de uma impostura?
Sokal - Uma impostura não. Talvez nós não tenhamos explicado bem o que queríamos dizer. Focalizamos o que os autores dizem quando entram em searas que nós conhecemos, como a matemática e a física. Observamos que eles aí cometeram abusos graves. Valeram-se de conceitos em contextos onde eles não têm pertinência alguma, deformaram termos científicos etc. Isso obviamente não prova nada a respeito do resto da obra.
Folha - Mas está escrito na "Introdução" que os abusos dos autores indicam falta de rigor e racionalidade no conjunto da obra...
Sokal - As imposturas não invalidam a obra toda, e nós somos explicitamente agnósticos sobre a parte que não diz respeito à física. Claro que você pode me perguntar qual é então a importância do nosso livro se o papel da matemática e da física é tão pequeno na obra dos autores criticados. O livro é importante porque mostra que há abusos graves numa parte da obra e permite questionar o resto. Não somos competentes para dirigir o questionamento, porém desejamos que outros o façam.
Folha - A sua análise me parece justa quando o sr. diz que os autores têm um estilo pesado e pomposo e que estão errados ao dizer que há nas obras deles uma preocupação literária e poética. Mas é injusta, na medida em que o sr. só cita os textos incompreensíveis dos autores e não leva em conta o que eles fizeram compreender.
Sokal - Nós escolhemos um tema que é o abuso de conceitos da matemática e física. Os autores abusaram da autoridade, se valeram do fato de serem professores.
Folha - O sr. diz que os intelectuais franceses criticados são frequentemente incompreensíveis porque o que eles escrevem não quer dizer absolutamente nada.
Sokal - Refiro-me a textos determinados. Não faço uma crítica global.
Folha - Voltemos à questão da incompreensibilidade dos autores... Jean Bricmont - As pessoas podem ser favoráveis à psicanálise, mas também reconhecerem que nos textos citados por nós há impostura, ou seja, naqueles em que Lacan usa a matemática. Não pretendemos julgar a psicanálise dele e nem a filosofia de Deleuze.
Sokal - Não estamos dizendo que tudo deva ser imediatamente compreensível: 95% dos trabalhos da física não o são. Nós nos limitamos aos textos que se referem aos domínios que conhecemos bem.
Folha - Em um artigo, Julia Kristeva disse que por intermédio dela o sr. estava criticando a França inteira. O que é um exagero, claro. Mas ela teve razão ao dizer que as ciências humanas e, em particular, a interpretação dos textos literários e a interpretação analítica não obedecem à lógica das ciências exatas. Como o sr. responde a isso?
Sokal - Claro que a lógica não é a mesma, mas nós criticamos o livro da Kristeva sobre a semiótica, no qual ela despeja coisas incompreensíveis sobre o leitor.
Bricmont - É importante dizer que não se trata de um debate entre o pensamento anglo-saxão e o francês. Existe na França um espírito francês racionalista, que apreciamos. Diderot, por exemplo, era um racionalista, ao contrário dos autores que criticamos.
Folha - O sr. tem razão ao falar do terrorismo do pensamento intelectual francês. Mas será que este terrorismo não é devido à submissão dos americanos do Norte e do Sul ao espírito sistemático de papagaíce no campo das idéias?
Sokal - Nós utilizamos a palavra terrorismo uma única vez a propósito da Kristeva, que cita um enunciado muito técnico da lógica matemática -um enunciado que nem os matemáticos entendem-, dizendo "sabe-se que", quando ninguém sabe. Trata-se de uma forma de intimidar o leitor.
Folha - Gostaria de saber se existe na América do Norte -como na do Sul- um espírito de imitação.
Bricmont - Na do Sul existe. Basta alguém espirrar em Paris para as pessoas ficarem gripadas em Buenos Aires.
Sokal - Em Nova York é a mesma coisa. Podemos dizer que as modas intelectuais parisienses se reproduzem nas universidades norte-americanas e talvez nas brasileiras com um atraso de dez anos.
Folha - Em resposta ao seu livro, escreveu-se no "Nouvel Observateur" que existe incompatibilidade entre uma cultura norte-americana baseada no fato e na informação e uma cultura francesa que se vale mais da interpretação e do estilo. O que o sr. acha disso?
Sokal - Afirmar que os franceses não levam em conta os fatos e a informação é confundir a alta cultura com a alta-costura, que só se interessa pelo estilo.
Bricmont - Trata-se de um trocadilho. Nós obviamente apreciamos a alta-costura.
Sokal - O pensamento, em qualquer domínio, implica a argumentação. Não pode ser apenas uma questão de estilo. Se for, é poesia.
Folha - Os senhores são mais realistas do que o rei, mais insistentes na separação radical dos gêneros do que os clássicos franceses.
Bricmont - É verdade que me irrito quando encontro um filósofo, como Lyotard, que diz que Deleuze é literatura, quando é filosofia. Tenho tendência a achar que essa história de dizer que não é uma coisa nem outra não é possível.
Folha -Seja como for, a contribuição dos pensadores de língua francesa para a história das idéias não é propriamente negligenciável. Gostaria que os senhores fizessem um balanço da contribuição dos norte-americanos.
Bricmont - Balanço é impossível, mas quero citar Chomsky, que é um racionalista e teria gostado do nosso livro.
Sokal - Quando o "Le Monde" disse que há um imperialismo norte-americano e que eu estou querendo impor a cultura da Disney na França, respondi que a América que nós apoiamos é a de Chomsky.
Folha -Quais são as condições necessárias para a instauração de um verdadeiro diálogo entre as ciências exatas e as humanas?
Bricmont - Há certos ensinamentos resultantes da leitura sistemática dos autores que criticamos. É preciso saber do que a gente está falando. Se alguém quer falar das ciências exatas, deve se informar seriamente. Tudo que é obscuro não é necessariamente profundo. É fundamental distinguir entre os discursos que são de difícil acesso por causa do assunto tratado e aqueles cuja banalidade fica escondida pela falta de clareza deliberada dos propósitos. A ciência não é um "texto". As ciências exatas não são um reservatório de metáforas prontas para serem utilizadas pelas ciências humanas, que têm seus próprios métodos e não precisam seguir as mudanças na física ou biologia. Não se deve usar o argumento de autoridade etc.
Folha - Vocês dizem que criticam as idéias obscuras porque elas reforçam o antiintelectualismo fácil existente na população. Acham que se trata de fazer uma ciência que seja clara e assim possa se tornar popular no próximo século?
Sokal - Popular no sentido da vulgarização?
Bricmont - A vulgarização pode ser bem feita...
Sokal - No livro, a cada vez que abordamos um domínio científico, procuramos nos referir a bons textos de vulgarização.
Folha - Qual é a relação entre a vulgarização e o mercado?
Sokal - Uma parte da literatura de vulgarização peca por excessos em virtude do mercado. Insiste, por exemplo, nas teorias mais especulativas, apresentando-as como decorrentes da ciência estabelecida. A vulgarização é difícil, é uma tradução de conceitos científicos. Em nosso livro nós explicamos a teoria da relatividade para um público que não é de cientistas.
Folha -Vocês terminam o seu livro dizendo: "Lembro-me que há muito existiu um país em que os pensadores e os filósofos se inspiravam nas ciências, pensavam e escreviam claramente, procurando compreender o mundo natural e social, esforçavam-se para difundir os seus conhecimentos entre os cidadãos e colocavam em questão as iniquidades da ordem social. Esta época era a do Iluminismo -das Luzes- e este país era a França". Gostaria de saber o que se pode esperar agora? Um novo iluminismo ou uma outra coisa?
Bricmont - O fim do livro foi para lembrar aos franceses que o nosso pensamento não é antifrancês. Tendo a pensar que o espírito do iluminismo deveria voltar, assim como a crítica aos abusos de poder que existem na sociedade. O que as pessoas de esquerda chamam de pensamento crítico é obscuro, relativamente obscurantista. Somos contra isso.
Sokal - Houve um progresso cognitivo inacreditável neste século, que levou a um progresso tecnológico, mas os progressos cognitivo e tecnológico não implicaram um progresso moral. É preciso estabelecer distinções claras. Dizer que Auschwitz é a consequência do iluminismo é ridículo.
Bricmont - Os fascistas utilizavam a tecnologia, mas eram contra o iluminismo.

Onde encomendar:
"Impostures Intellectuelles", de Alan Sokal e Jean Bricmont (Editions Odile Jacob, 274 págs., 140 francos), pode ser encomendado à Livraria Francesa (r. Barão de Itapetininga, 275, fundos, tel. 011/231-4555, São Paulo).

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