São Paulo, segunda-feira, 10 de novembro de 1997
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O segundo incêndio da USP

JAIR BORIN

A USP ardeu duas vezes, ambas de forma trágica e contra o autoritarismo. A primeira em 1968, na Maria Antônia, no auge da resistência à ditadura militar. A segunda na última quinta-feira, quando grupos de garotos excluídos socialmente passaram a depredar prédios, queimar guaritas e destruir o muro de três metros de altura, símbolo de uma administração do campus que insiste em isolar a universidade da comunidade que a envolve.
"A USP é dos bacanas; nós também somos gente." Esse era o refrão dos garotos da favela Jardim São Remo e de outras comunidades próximas ouvido nas manifestações de protesto contra a morte do menor Daniel Pereira de Araújo, de 15 anos, que pulou o muro na tarde de Finados para nadar na raia da universidade.
O muro da USP mostra a insensibilidade da reitoria no trato de uma questão profundamente arraigada na sociedade brasileira: a do direito à cidadania.
A elite universitária, a exemplo das demais elites do país, prefere fechar os olhos aos graves problemas sociais a encará-los e procurar soluções. Apenas os que já têm poder e prestígio são chamados para o banquete. Para eles, tudo. Das melhores condições de vida às vagas nos melhores cursos universitários das nossas faculdades públicas, gratuitas e de qualidade. Para os pobres, os negros, os sem-terra, a exclusão social, a repressão.
Apenas 3% dos jovens brasileiros conseguem ingressar numa faculdade. Desses, somente 1% nas universidades públicas e gratuitas. Em contrapartida, cerca de 20% dos jovens norte-americanos se formam num curso superior.
O sentimento de exclusão social marca profundamente o jovem adolescente, talvez mais do que o adulto, já sofrido e calejado. Morar ao lado da USP, ver o seu centro de práticas esportivas, campos de futebol, quadras, piscinas, jardins e não poder frequentá-los magoa profundamente. E, embora despolitizados, muitos desses jovens sabem que tudo isso é mantido com a verba de tributos que incidem mais pesadamente sobre a população de baixa renda.
A mágoa represada explode muitas vezes num protesto efêmero, violento, não raro devastador. Infelizmente, a USP ardeu motivada pela morte de um menor que se banhava nas águas proibidas de seu lago reservado, apenas, para a prática do remo, esporte inacessível ao povão.
Na favela São Remo, onde moram em condições precárias cerca de 2.000 famílias, muitas delas de servidores da própria universidade, dor e revolta.
Enquanto a elite que pensa o país continuar achando que basta um muro de três metros, com uma segurança mal treinada, para defendê-la do assédio dos excluídos, a barbárie se ampliará por todos os segmentos da sociedade. Ela está aí, todos os dias, na rebelião nos presídios, na Febem, nas ruas da cidade e, agora, no interior da maior universidade pública do país.

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