São Paulo, terça-feira, 11 de novembro de 1997
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A universidade e a favela no verão paulista

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Uma tarde de domingo de sol na cidade podre -São Paulo apodrece no verão, os rios fedem mais do que no inverno, os córregos, as represas, tudo exala um cheiro de podridão. Ainda não é verão, mas é como se fosse, as temperaturas elevaram-se insuportavelmente acima de 30°C.
Uma tarde de domingo de sol forte na cidade feia -uma camada de fuligem negra acumula-se no céu bem acima de São Paulo, envolve os prédios, os carros, o interior das casas, das narinas e dos poros.
Uma tarde de domingo de calor na cidade em que a luz do sol se estilhaça contra o excesso de vidraças -o excesso de vidros azuis espelhados na arquitetura de mau gosto-, em que a luz do sol reflete, quase cega as pessoas.
Foi numa tarde de domingo asfixiante assim -porque em São Paulo não tem praia, não tem água, não tem árvore, não tem o verde vento dos coqueiros pernambucanos nem a brisa marinha que alivia-, foi numa tarde assim, faz uma semana, que um menino de 15 anos, morador de uma favela vizinha, mergulhou na proibida raia olímpica da Universidade de São Paulo (USP).
Como São Paulo é uma cidade com excesso de concreto armado, o calor triplica, armazenado na argamassa. Quem mora nessa metrópole tem o espírito cheio de tijolos e metal. A raia olímpica da universidade devia representar para o menino o sonho de uma piscina azulada em seu quintal.
Mas, como o campus da USP foi há poucos anos fechado para o público nos finais de semana, o menino Daniel Pereira de Araújo e seus oito amigos, que nadavam na raia olímpica, teriam sido advertidos e perseguidos pelos seguranças da Cidade Universitária até deixarem o campus.
Exceto Daniel, cujo corpo apareceu boiando três dias depois na mesma raia. Na versão dos garotos, ele não teria conseguido sair da água junto com os outros. Falta esclarecer se o estudante morreu afogado ou se seu corpo foi jogado na água quando ele já estava morto.
O campus da Universidade de São Paulo é um grande parque, cheio de bosques e gramados. Uma raia olímpica e um centro esportivo com piscinas e quadras de todo tipo não podem deixar de ser uma tentação para os habitantes da favela São Remo, separada do campus apenas por um muro.
Na ocasião da descoberta do corpo do garoto, a USP elegia seu novo reitor -um risonho Jacques Marcovitch, um dos responsáveis, já que ligado à atual gestão, pelo fechamento da Cidade Universitária nos finais de semana.
A questão que se discute (agora ainda mais) é se a "comunidade" tem direito de usufruir do privilégio do campus arborizado. Que a influência social da universidade é mínima, isso é evidente. Que a universidade é conservadora e se fecha em grupelhos que se revesam no poder, isso também parece evidente. Resta saber que "comunidade" é essa, entidade fictícia, de homens que deviam ser unidos e solidários, coletividade que não tem qualquer força contra os interesses estabelecidos.

E-mail mfelinto@uol.com.br

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