São Paulo, terça-feira, 11 de novembro de 1997
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Hermínio Bello guarda arquivo com inéditas

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DO ENVIADO ESPECIAL

A figura por trás da concepção de "Chico Buarque de Mangueira" é também a figura por trás de parte considerável do que tem sido produzido em MPB nos últimos quase 40 anos.
O carioca Hermínio Bello de Carvalho, 62, produtor do disco e do show mangueirense -que incluem, além de Chico, as participações de Nelson Sargento, Jamelão, Lecy Brandão, Alcione, Christina, João Nogueira, Carlinhos Vergueiro, Velha Guarda da Mangueira e (só no show) Beth Carvalho-, prefere se considerar apenas um coadjuvante nesse cenário.
"A minha história não tem a menor importância", afirma. "Fui um garoto neto de um violeiro, de origem muito humilde, que conviveu com Cartola, Carlos Cachaça, Padeirinho, Nelson Cavaquinho. Virei um animador cultural, mas o valor era todo deles."
Apesar da modéstia, foi ele quem evidenciou nomes como os de Clementina de Jesus -ao lançá-la, quando ela tinha já 63 anos, em 1965, no show "Rosa de Ouro"- e Paulinho da Viola, seu parceiro até hoje.
Um exame rápido na música popular brasileira pós-1960 demonstra-o, também, letrista de uma lista extensa de clássicos, a partir de "Cicatriz", parceria com Zé Keti cantada por Nara Leão no mitológico show "Opinião".
Com Cartola e Carlos Cachaça, compôs "Alvorada" (que Clara Nunes transformou em sucesso). Introduziu poemas aos choros de Jacob do Bandolim "Noites Cariocas" e "Doce de Coco".
Em parceria com Paulinho da Viola, conta um rosário: "Sei Lá Mangueira", "Rosa de Ouro" (também de Elton Medeiros), a recente "Timoneiro". O mesmo Paulinho tornou clássica "Mas Quem Disse Que Eu Te Esqueço?", parceria com Ivone Lara.
Foi interpretado por Dalva de Oliveira ("Folhas no Ar"), Elizeth Cardoso ("Valsa da Solidão"), Marlene ("Catedral do Inferno"), Elza Soares ("Sei Lá Mangueira"), Nara Leão ("Pintou e Bordou"), Maria Bethânia ("Cobras e Lagartos"), Nana Caymmi ("Prelúdio da Solidão"), Ademilde Fonseca e Gal Costa (ambas cantaram "Noites Cariocas").
Diz que Linda Batista foi sua primeira incentivadora, ainda nos anos 50. "Era muito generosa comigo. Eu era um garoto muito pobre, que tinha um único paletó, e ela acreditou em mim. A partir daí fui conhecendo Dalva, Araci de Almeida, Jacob do Bandolim, Elizeth..."
Jornalista e produtor de shows, rádio e TV, fez de sua casa ponto de reunião de toda a alta tradição da música popular espraiada a partir do Rio de Janeiro.
Hoje, além de lutar pela criação do Centro de Memória da Mangueira, supervisiona o projeto Empório da Magia, de documentação de fitas cassete gravadas ao longo dos anos em sua casa, em conversas e rodas de samba. Em que vão dar os arquivos que vêm sendo reunidos a partir daí, nem ele sabe -por enquanto, só os organiza.
"A Clementina, por exemplo, não vai ser redescoberta pela gravadora dela. A EMI está se lixando para o acervo que possui. A importância dela vai se dar lá fora, há pessoas na Europa que colecionam seus discos. Nossa velha subserviência ao produto estrangeiro esmaga o que a gente faz. Essa é minha luta pessoal. Só não sei como fazer", diz.
Foi na mesma EMI que ele apostou em Clementina, fez o primeiro disco individual de Paulinho da Viola e apresentou Simone ("se ela resolveu seguir outro rumo depois, a culpa não é minha").
Reconhece a ousadia de apresentar Clementina -potencialmente uma ancestral de João Gilberto- no cenário pós-bossa nova. "Disso, sim, eu tenho plena certeza. São essas coisas que são significativas na minha vida."
Suas fitas registram desde o momento em que Paulinho da Viola cantou sua "Na Linha do Mar" a Clementina (que a gravaria em 73 -e manifesta entusiasmo instantâneo pela canção) até momentos bossanovistas como Tom Jobim cantando "O Morro Não Tem Vez" ou gravações até hoje inéditas de Cartola e Nelson Cavaquinho.
Em "Chico Buarque de Mangueira", Hermínio retoma a atividade prospectiva, resgatando do limbo, entre outras, "Capital do Samba", do mangueirense Zé Ramos, 86.
"Esse disco tem a peculiaridade das descobertas", diz. "Padeirinho estava esquecido, quase ninguém lembra de Geraldo Pereira. Descobri quatro sambas maravilhosos de Zé Ramos -imagine o que devem ser os outros. Esse é meu próximo projeto: cavoucar esse repertório maravilhoso dos sambas de terreiro da Mangueira. A Portela devia fazer o mesmo."
Enquanto Hermínio escava as minas mangueirenses, os arquivos de sua própria casa permanecem semivirgens -nenhum patrocinador ou gravadora se interessou por eles até aqui.
(PAS)

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