São Paulo, terça-feira, 11 de novembro de 1997
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Presidente implora 'empréstimo-emplastro' ao FMI

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS ILMO SR.

Michel Camdessus,
MD. Diretor-Presidente do FMI

Prezado senhor,
Venho por esta solicitar a V.Sa. que nos seja (a nós, Brasil, "bien entendu") concedido um empréstimo-ponte ou um empréstimo-emplastro ou um empréstimo-esparadrapo (perdoe o estilo atabalhoado, que é como anda nossa cabeça depois que a bicha explodiu, sendo que por "bicha" V.Sa. deve entender o que os técnicos chamam de "fundamentos de nossa economia" -por que não dizer "hiperinflação"?), pois não imagina V.Sa. a cagada global que se instalou aqui, depois que o nosso querido Plano Real foi (como sempre disseram as cassandras de nossa pátria) para o brejo, sendo que eu diria a V.Sa., que vive em inglês, mas é francês, que foi para o "shit-pan", ou mesmo que viramos um "bordel foutu".
Perguntou-me V.Sa. por telefone (sim, eu sei que eu estava alterado e eu não deveria ter chamado o senhor de "croupier de cet cassino de merde global", mas o senhor, atino e sanguíneo, deve ter entendido que, como dizemos aqui, "la mer n'est pas pour les poissons" (o mar não está para peixes), perguntou-me V.Sa. com a frieza tão chique dos banqueiros o "porquê" dessa grande, digamos, "reversão de expectativas" ou melhor, dessa grande cagada que foi a explosão do Plano Real e o cortejo de misérias que se lhe seguiu.
Eu vos responderia, senhor, que não houve um Plano Real real; houve, talvez, o plano de "haver Plano Real", já que nenhuma reforma foi feita. Estes três anos foram, como disse o falecido Mr. Simonsen, uma "anestesia sem cirurgia".
Eu diria mais, senhor, o Brasil desejou a hiperinflação que ora atravessamos (ohh... há uma beleza épica nessa desgraça a que assisto de minha janela). É difícil um cartesiano com formação bancária como V.Sa. entender essa afirmação. Mas o Brasil sempre ansiou quase sexualmente por um violento ataque da verdade histórica. É a única tese que posso aventar, senhor, diante da sabotagem que sofri.
O Congresso foi o maior culpado. Ele se recusou a qualquer reforma. O Congresso, monsieur, também não se pode chamar de "Congresso". Aquilo é uma cúpula de gordos e magros fingindo uma solenidad autoritária em defesa dos patrimônios.
Eu fiz tudo, senhor; puxei-lhes o saco, cobri-os de mimos e favores (V. Sa. não sabe o que é ouvir sorrindo um deputado de Rondônia), mas eles desenvolveram uma espécie de radar de morcego e detectam qualquer sedução que possa demovê-los da defesa da paralisia nacional.
Hoje eles estão aí, falando em anarquia, pondo a culpa em mim e, em breve, estarão expulsos pela vinda de algum milico que o capital internacional cooptar... Claro que não me refiro a vosso FMI amado, mas às forças produtivas do mundo que vão exigir a continuidade de seu "acesso aos mercados emergentes".
As empresas estatais também sabotaram o Plano, para não perder suas ilhas de tranquilidade num mar de merda, seus 17 salários, sua vida careta de classe média entre a pizza e o Monza. As chamadas "esquerdas", senhor (tenho vergonha de chamar aquilo de "esquerda", essa palavra heróica que nasceu ao som da "Marselhesa"), as "esquerdas", senhor, têm horror da democracia, que eles consideram uma coisa burguesa.
Nos três últimos anos, ficaram (como se diz aqui), "en jettant de la merde dans le ventilateur". Daqui a pouco, quando começar o novo fascismo caboclo, estarão felizes. Eles adoram uma ditadura para justificar seus fracassos.
A Igreja sabotou. Ela é um estranho aparelho reacionário-anarquista, um mix de Deus com Mao. Ficam no celibato triste de seus claustros enviando os camponeses para o pau, num delírio idealista típico de quem nunca pega no pesado, achando-se em linha direta com Deus, telefone vermelho, cagando regras para atrapalhar o processo com obviedades tipo "Cristo ama os pobres", estragando o MST que acabou também pelas coxas lindas de uma mulher nua na "Playboy" ("mais ces sont des choses exotiques inexplicables").
A imprensa se dividiu ao meio, como as línguas de cobra: os articulistas "chapas-negras" roeram com o dente do rancor qualquer esperança, torcendo para a cagada, como se fossem de outro país, nos olhando.
Outros transformaram o plano numa montanha-russa de sustos, um gibi escroto de quedas e explosões, buscando o sensacional fracasso de tudo, que vende mais que o sucesso.
Os intelectuais me ignoraram em suas torres da USP, estudando "o matema entranhado na essência da episteme do cu" ou me atacaram porque eu queria uma solução "administrativa" para o país, pois viam no Plano Real uma ameaça ao latifúndio melancólico da miséria, da qual eles vivem.
Os burocratas transformaram o tempo no país num lentíssimo e desesperante rio de merda, paralisando os processos. Os juízes ajuizaram com capas negras dizendo inanidades sobre o nada do nada.
Os estudantes albanizaram, os economistas nos cobriam de ironias e piadinhas, só faltavam passar a mão em nossa bunda, os aliados traíram, os ladrões roubaram, os escritos escrotizaram, e não, esses canalhas não sentem culpa, monsieur, me perdoe o tom exasperado tão diferente do estilo "detaché" de um Robbe Grillet ou de um Butor ("Ohh... Que je me souviens de la academie..."), em suma, monsieur, ajude-nos que a emergência é total.
Mas, ainda respondendo a pergunta de V.Sa., reafirmo que o Brasil "desejou" o fracasso do plano. Esquerda, direita e centro se uniram pelo fascínio de ver a morte de perto. Há 400 anos que o Brasil se esquiva dos crimes e oculta seu destino predatório e oportunista.
Minha pobre tese de ex-sociólogo é que temos a fome de um grande erro que nos redima, a volúpia do abismo. A cagada da hiper é uma espécie de anti-utopia; temos um sonho de ratos, ansiando pela luz dos buracos. A fome de merda é ancestral aqui; precisamos errar até o fim para saber "quem somos". Só isso nos explica.
É claro, monsieur, que este puteiro em que o capital internacional nos transformou (com todo respeito a V. Sa....) também contribuiu para hoje eu estar aqui pedindo, diria mesmo implorando, um "empréstimo-emplastro" para nos tirar (o Brasil, "bien entendu") da crise geral, já que a hiper e a anarquia (os sociólogos falam em "ruptura do tecido social" e me culpam, eu, o pele-de-pica do processo, mas tudo bem... Isso V.Sa. não entende) estão destruindo tudo. Se não puder ser em grana, monsieur, estamos aceitando mantimentos.

Veillez-vous accepter mes sentiments distingués
Le President du Bresil

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