São Paulo, quinta-feira, 13 de novembro de 1997
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Deboche, puro deboche

CLÓVIS ROSSI

São Paulo - O poder pode não ter corrompido Fernando Henrique Cardoso na acepção clássica de corrupção. Mas é evidente que corrompeu, talvez irremediavelmente, a sua sensibilidade.
Só assim se explica a sua frase "na conta, o que cabe a cada um é pouquinho", para avaliar o seu pacotaço.
É um deboche, primeiro, com a aritmética. Os R$ 20 bilhões que o governo diz que vai retirar da economia (sem contar o efeito da duplicação dos juros) representam R$ 125 para cada um dos 160 milhões de brasileiros.
No pressuposto insustentável de que a conta será dividida igualmente entre todos (no Brasil, a corda arrebenta sempre do lado mais fraco), ainda assim dá mais de um salário mínimo por pessoa. Em um país em que o mínimo é o obsceno limite de renda para um mundão de pessoas, falar em "pouquinho" é deboche.
É um deboche também com a ética. O governo apostou (a expressão é de FHC em entrevista ao jornal "Gazeta Mercantil") e perdeu. Mas passa a conta adiante e ainda faz gracinha.
No caso do funcionalismo público federal, mais que deboche, é insulto. Está há três anos sem reajuste. O pacote estende o congelamento salarial por mais um ano. Antes, o custo já não era pouco; agora, é desumano.
Por fim, mas mais importante, o presidente não parece tomar conhecimento do custo brutal da recessão a que induz a alta de juros, acima de tudo, mas também o pacote fiscal. E, aí, o custo não é apenas econômico. A incerteza que se instalou no país afeta também o psiquismo coletivo.
Tudo somado, o "povo" que, segundo o presidente, "entendeu" as medidas só pode ser um: o "povo" que gravita em torno do palácio presidencial, uma gente, com raríssimas exceções, feita com dobradiça na espinha, pronta, sempre, a gritar em coro: "Bonita camisa, Fernandinho". Seja qual for o Fernando, José, Pedro ou Antônio de turno no trono.
O remédio adotado já era amargo o suficiente para dispensar o deboche.

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