São Paulo, quinta-feira, 13 de novembro de 1997
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As "organizações sociais" e o governo

CARLOS FRANCISCO BANDEIRA LINS

No breve intervalo entre a despedida de Sua Santidade, o papa, e a chegada do presidente Bill Clinton foi editada a MP (medida provisória) nº 1.591, de 9 de outubro de 1997.
Seu objetivo explícito é a qualificação de entidades de direito privado sem fins lucrativos como organizações sociais (OS), entes que, por contratos de gestão, substituam o poder público nas áreas de ensino, pesquisa, tecnologia, meio ambiente, cultura e saúde.
O que ali está menos explícito, porém, é a monumental transferência de recursos públicos para entidades privadas discricionariamente escolhidas, cuja direção poderá ser tomada de assalto pelos detentores do Poder Executivo.
A MP é inconstitucional, porque a matéria tratada não tem relevância e urgência. Relevante é o dano que causa ao país; urgentes, talvez os apetites a saciar.
A isso se somam inconstitucionalidades tópicas. É exemplo o fato de amesquinhar-se o papel que tem o Ministério Público na defesa do patrimônio público e social. Pela MP, o Ministério Público só agirá contra os dirigentes das organizações sociais a chamado do governo -isto é, terá de esperar um aviso da raposa para coibir o roubo no galinheiro.
Mas as inconstitucionalidades de que padece a MP são apenas um aspecto de sua iniquidade. Salvo menção a princípios gerais, não há critério para a escolha das entidades que receberão recursos orçamentários e bens públicos: vale a vontade do Executivo.
Grupos que vivem nas ante-salas do poder são favorecidos. Dois entes públicos são doados a associações constituídas antes da MP com o objetivo de receber o espólio daqueles órgãos, acrescentando-se que servidores de um deles, cuja sede está no Rio de Janeiro, poderão ser cedidos ao governo do Estado... do Maranhão.
Como se em tempos de fartura, prodigalizam-se aos dirigentes das OS (inclusive aos membros de seus conselhos) vantagens pecuniárias até hoje sempre obstadas aos administradores de entidades benemerentes.
Não são esquecidos servidores, que, postos à disposição das OS, poderão receber vencimentos pelos cofres públicos e outras vantagens pecuniárias pagas pela organização.
Está arredio em seu emprego humilde o cabo eleitoral de quem sempre dependeu o sr. ministro para ser eleito deputado ou com quem conta a "autoridade supervisora"? Dê-se-lhe um cargo fictício em uma OS para que possa ele garimpar, em tempo integral, os votos decisivos.
Como, porém, fazer isso (e muito mais) se há nas entidades privadas dirigentes íntegros que jamais compactuariam com desmandos?
Há que substituí-los ou esmagá-los. Com astúcia e engenho, prevê-se uma nova composição para os conselhos. As associações civis (a cujos membros a MP concede a graça de poder ocupar, no máximo, um décimo dos lugares no conselho da entidade que eles próprios criaram) e as fundações (em favor de cujos instituidores o governo admite o mesmo dízimo) deverão escancarar as portas a representantes de entidades da sociedade civil e do poder público.
Seria chocar a população reclamar para agentes do governo a maioria das vagas. Modestamente, a MP diz contentar-se com 20% a 40%.
Como, porém, os representantes da sociedade civil não podem ser mais de 30% do total e outro dispositivo diz que estes mais aqueles devem ter a maioria dos assentos, nunca os do governo serão apenas os 20% ilusionisticamente apontados como patamar mínimo.
Nem o mais crédulo ser duvidará que se encontrem no seio da sociedade civil entidades e pessoas permeáveis a pressões governamentais. E, esperta, dispõe a MP que de 10% a 30% das vagas serão ocupadas por membros eleitos pelos conselheiros das demais categorias, o que significa que o máximo esforço a ser feito pelo governo é dobrar um ou dois conselheiros a fim de eleger, para o preenchimento dessas vagas, pessoas de confiança. Eleitas, os governantes passam a ter maioria absoluta dentro da OS, que melhor se chamaria "organização a serviço do governante".
Mas vai além a armadilha em que se quer enredar as entidades privadas. Aquelas que pretendam se qualificar como OS terão primeiro que alterar seus estatutos, aninhando representantes do poder público e outras pessoas estranhas sem que daí resulte direito líquido à qualificação, dependente de decisão discricionária do governo.
Assim, depois de assegurado o ingresso de vários representantes do poder público, se por acaso não ficar o governo satisfeito com o perfil das entidades que ali também estejam, poderá, discretamente, sugerir substituições: onde se lia OAB, leia-se CBF; onde se dizia CNBB, diga-se escola de samba Padre Miguel etc.
Em suma, a MP dá ao governo o meio para que possa ter o controle total das entidades privadas.
No instante em que avança o processo de venda das estatais, o assalto a entidades privadas e a injeção nelas de recursos públicos a serem manejados por direções espúrias passam a representar para o Brasil uma tragédia hedionda. A medida provisória nº 1.591 é isso.
Rejeitá-la é o que se impõe a um Congresso que tenha apreço por democracia e moralidade pública. Revogá-la é o dever de um governo que não queira ter a condenação eterna da história.

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