São Paulo, sexta-feira, 14 de novembro de 1997
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'Cartomante' recruta campeões russos

FERNANDA PAPA
ENVIADA ESPECIAL A MOSCOU

Um método simples, que chega a ser rudimentar, faz dos russos campeões olímpicos: a análise de suas impressões digitais.
Criado em 1950 para a preparação dos atletas da então União Soviética, o processo ainda é o principal instrumento para o recrutamento dos esportistas de ponta russos que, apesar do colapso soviético, continuam se destacando no cenário internacional.
Já a partir de 1952, na Olimpíada de Helsinque, na Finlândia, os soviéticos "estouraram" no esporte mundial, ficando em segundo naqueles Jogos, com 22 medalhas de ouro, 19 de prata e 17 de bronze.
Desde então, como União Soviética, foram 393 ouros, 316 pratas e 198 bronzes. Nos Jogos Olímpicos de Barcelona, na Espanha, em 1992, como Comunidade dos Estados Independentes -a URSS não existia mais-, russos e "unificados", outras 11 nações, levaram 45 ouros, 38 pratas e 29 bronzes.
Mãos sujas
Para chegar às medalhas, especialistas russos usam tinta mata-borrão e papel amarelado -por causa do tempo- e analisam impressões digitais de atletas.
Estes tiveram suas mãos pintadas já aos 6 anos de idade, quando passaram por uma primeira seleção, na escola, e sem saber do que se tratava (veja quadro abaixo, que mostra história de um personagem russo fictício, Yuri).
Poucos sabem que Alexander Popov, nadador campeão olímpico nos 100 m livre, e Vitaly Scherbo, ginasta que coleciona seis ouros olímpicos, são "testados" regularmente em duas pequenas salas, com estofados furados, sapatos e bules jogados pelo chão e um computador ultrapassado.
Apenas cinco mulheres trabalham no local, o Laboratório de Antropologia, Morfologia e Genética, que faz parte do Instituto de Pesquisa Científica da Educação Física da Rússia, em Moscou.
Mais 50 mil atletas já foram testado ali, e 15 mil deles se tornaram esportistas de sucesso.
Tamara Feldenov Abramova é a chefe do laboratório, onde atua há 25 anos. Formada em computação, desde que começou a trabalhar ali utiliza somente caneta e papel para reunir os dados genéticos e morfológicos dos atletas.
A análise das impressões digitais passa basicamente por fórmulas desenvolvidas nos anos 50.
Tamara não pode falar das fórmulas. Diz que foi uma "abertura" ter falado à Folha, quando, pela primeira vez em sua vida, conversou sobre sua profissão: "checadora de impressões digitais".
'Cartomante'
Ao olhar a palma e os dedos das mãos de uma pessoa, Tamara diz ser capaz de determinar sua aptidão para o esporte, analisando força, agilidade, velocidade, resistência muscular e coordenação.
"A técnica é a melhor que conhecemos, e sabemos como as coisas funcionam em outros lugares. Mas cada país tem seus métodos; a diferença fica por conta dos instrumentos. Os nossos são simples, mas úteis", afirma Tamara.
Segundo ela, o laboratório recuperou seu prestígio nos últimos três anos, depois de um período bagunçado, com o fim da URSS.
"Com o fim da União Soviética, muitos atletas voltaram para seus Estados, e houve uma descentralização na preparação física. Não havia mais dinheiro; a Rússia viu seu esporte cair", diz.
Mas, antes dos Jogos de Atlanta, nos EUA, em 1996, o Comitê Olímpico Russo voltou a investir na delegação, e os testes no laboratório voltaram a ser obrigatórios.
A Rússia ficou em segundo lugar nos Jogos, com 26 medalhas de ouro, 21 de prata e 16 de bronze.
"Reavaliamos todo mundo de novo, e o trabalho é o mesmo de outros tempos. Só não controlamos mais atletas de outras Repúblicas, antes soviéticas, e das ex-socialistas. Mas ainda se pode trabalhar conosco, pagando."
Além da informação genética, Tamara diz que o atleta é submetido às medições de peso, altura, dobras cutâneas e curvação da coluna. Os instrumentos são os mesmos de 50 anos atrás.
Tudo é muito rápido. O atleta chega, despe-se perto da balança, pois não há espaço específico, e é examinado. Números anotados, ele pode ir embora.
Uma pessoa que trabalhou no local comenta que normalmente o atleta não faz pergunta nenhuma.
As informações, nunca divulgadas, sobre cada um dos esportistas são colocadas em fichas de papel-cartão e guardadas em um arquivo antigo, vizinho de "João", um esqueleto que atualmente serve de árvore de Natal.

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