São Paulo, domingo, 16 de novembro de 1997
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Adeus aos tabus...

ROBERTO CAMPOS

Nunca fiz profecia de validação tão rápida. Quando da discussão na Câmara da lei regulamentadora da quebra do monopólio estatal do petróleo, escrevi ser imprudente e desnecessária a promessa de FHC de não privatizar a Petrossauro durante seu governo. Em seguida, amarrou também a mão de seus sucessores ao transformar essa promessa em artigo de lei. Meu receio era que sobreviessem crises fiscais e cambiais que tornassem aconselhável a venda desse megaativo. As consequências favoráveis da privatização da Petrossauro seriam: a) atingirmos rapidamente auto-suficiência em petróleo pela mobilização intensiva de investimentos privados nacionais e estrangeiros; b) melhorarmos a posição fiscal, seja pela receita da privatização, seja pela eliminação dos privilégios da estatal (isenções fiscais, royalties apenas simbólicos, doações à Petros cinco vezes maiores que os dividendos do Tesouro); c) reforçarmos nossa posição cambial pela atração de capitais estrangeiros e pela substituição de empréstimos por capital de risco; d) eliminarmos um quisto de irracionalidade que nos levou a transformar um combustível fedorento num unguento religioso. Passaríamos da era do fetichismo pré-lógico para a era do pragmatismo econômico!
Ao contrário do que se propala, a capacidade de investimento da Petrossauro é limitadíssima, pois pouco sobra dos lucros após as doações à Petros. O que ela chama de "capacidade de investimento" é composto pela renúncia do Tesouro e dos Estados às receitas que, segundo praxes internacionais, são pagas pelos trustes ao poder concedente. Uma parcela dos investimentos é financiada por endividamento externo. Apesar de mais de quatro decênios de poder monopolístico privilegiado, as importações de petróleo representam nada menos que 60% do déficit comercial de US$ 10 bilhões estimado para 1997.
A crise cambial e fiscal que eu temia, deflagrada pelo colapso asiático, aconteceu antes do esperado. E provocou o "Pacote 51" de 10 de novembro. Se FHC não se tivesse auto-amarrado à demagogia nacionalóide, o primeiro item do "pacote" deveria ser a fixação da data para a privatização da Petrossauro. O impacto sobre as Bolsas seria positivo e fulminante, pela percepção internacional de restauração da solvência brasileira a curto prazo. Essa privatização poderia render ao Tesouro em torno de US$ 15 bilhões, com boa parcela em moeda forte, ou seja, três quartos do que o governo espera obter com as miuçalhas do "Pacote 51".
O "Pacote 51" foi acolhido com frieza na finança internacional e ceticismo nas Bolsas brasileiras. Haveria outras medidas? Claro que sim. Mesmo sem a privatização do dinossauro, várias providências poderiam ser tomadas, de resultados mais mensuráveis e sem efeitos recessivos:
- venda imediata das ações da Petrossauro excedentes dos 50,1% do controle estatal. Aos preços anteriores à crise, esse excedente em poder do Tesouro e do BNDES era estimado em cerca de US$ 9 bilhões, valor que hoje teria declinado para cerca de 6 bilhões;
- privatização imediata da BR Distribuidora de Petróleo. O ingresso da Petrossauro na distribuição de combustível foi invenção da era Geisel (1977) e certamente nada tem a ver com as funções típicas do governo;
- anúncio antecipado da data de privatização da Embratel e de Furnas, ambas as quais gerariam substanciais recursos cambiais e fiscais;
- proibição de novos empréstimos externos a estatais como Petrossauro, Telessauro e Eletrossauro. No caso do petróleo, os investimentos deveriam doravante ser feitos por meio de parcerias com o setor privado, e, no caso da eletricidade e telecomunicações, seria melhor acelerar as privatização, pois é sabido que os investimentos estatais contêm sobrepreços e defasagens tecnológicas;
- reversão ao Tesouro das contribuições das estatais aos seus fundos de pensão, em excesso da norma atuarial de 7% sobre a folha de pagamento.
Uma pergunta pertinente, que tenho ouvido de analistas internacionais, é a seguinte: "Se apenas 19 das 51 medidas dependem de ação do Legislativo, por que as decisões não foram tomadas antes? Falta de imaginação? Falta de coragem política? Falta de percepção da vulnerabilidade brasileira?".
O grande milagre do Plano Real foi, por meio de hábil engenharia financeira, termos escapado da "crise de estabilização", ou seja, da queda temporária do produto real na fase de transição. Nessa fase, desincham os setores artificialmente inchados pela expansão monetária, em velocidade superior à expansão dos setores antes desencorajados pelo processo inflacionário.
A percepção internacional é que o Brasil está pagando, com o "Pacote 51", a fatura atrasada das reformas que não fez. Vários são os sinais de nosso desajuste: 1) o déficit nominal estimado para o setor público neste ano (4,7% do PIB) é da mesma ordem de magnitude do déficit cambial de pagamentos externos (4,5% do PIB). Isso indica que a poupança interna não aumentou, e tudo o que fizemos foi substituir o anterior financiamento inflacionário pelo endividamento externo; 2) como proporção do PIB, nosso déficit público nominal continua bem maior do que o dos nossos vizinhos, pois está próximo de 5%, contra 2,1% na Argentina, 0,5% no México e superávit fiscal no Chile, país que fez seu grande ajuste na década passada; 3) a desaceleração econômica que será provocada pelo "Pacote 51" é uma versão branda da crise de estabilização de que o Brasil parecia ter escapado. Na Argentina, em 1995, o PIB real caiu 4,6%, no México, 6,2%, e na Venezuela, 1,6% (em 1997), enquanto o Brasil pós-Plano Real experimentou fases de euforia e mediocridade, sem nenhum período de crescimento negativo.
O ideograma chinês da crise é uma combinação de perigo e oportunidade. A sabedoria consiste em aproveitar o perigo para criar oportunidades.
A oportunidade consiste em aprofundar a revolução cultural que FHC, com justiça, atribui ao Plano Real, para questionarmos velhos tabus:
- "A gratuidade das universidades públicas é um dever democrático". Ao contrário, essa gratuidade é injusta e antidemocrática, pois beneficia sobretudo os ricos e abastados, enquanto os pobres têm seu acesso bloqueado pela insuficiência do ensino público primário e secundário. A igualdade de acesso deveria ser promovida por meio de "vales-educação" para as famílias pobres;
"A Previdência Social deve ser pública e compulsória para melhorar a distribuição de renda." Falso! A compulsoriedade é antidemocrátia, pois priva o cidadão do direito de administrar sua poupança. E a Previdência estatal é um exemplo de solidariedade invertida, pois as contribuições dos pobres, lançadas na vala comum, financiam pensões e aposentadorias precoces da burocracia e da classe média. O democrático seria permitir ao cidadão optar entre o sistema público e o sistema de capitalização individual privado, único capaz de transformar a Previdência em instrumento de desenvolvimento econômico. À parte a correção do déficit público, a única forma de aumentarmos substancialmente a poupança interna é a privatização da Previdência;
"As garantias trabalhistas da Constituição e da CLT protegem o trabalhador das inclemências do mercado." Ao contrário, a legislação trabalhista expulsou para o mercado informal 57% da força de trabalho, que fica à margem da lei, à busca de flexibilidade para competir. A legislação trabalhista brasileira é um fator de desemprego e exclusão social, criando um país de salários baixos e custos altos de mão-de-obra.
Se a atual crise nos levar ao abandono desses antigos tabus, o sofrimento não terá sido em vão.

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