São Paulo, domingo, 16 de novembro de 1997
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Leia abaixo o texto escrito pelo presidente Fernando Henrique Cardoso para a Apresentação do livro "Depois de 1989 - Moral, Revolução e Sociedade Civil", de Ralf Dahrendorf.
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À guisa de Prefácio
A leitura deste pequeno-grande conjunto de palestras e de reflexões de Ralf Dahrendorf deveria ser obrigatória aos brasileiros da minha geração, que tiveram formação sociológica de inspiração marxista.
Ela nos reconcilia com temas e autores que nas décadas de cinquenta, sessenta e até setenta eram vistos por nós com certa suspeita: seus conceitos pareciam-nos antes racionalizações ou mesmo percepções ideológicas do que capazes de inspirar análises sociais, para usar um termo caro a Dahrendorf.
Por certo, o Dahrendorf de "Class and Class Conflict in Industrial Society" era lido e apreciado. Talvez pelas mesmas razões que, sobre esse tema, levaram Max Horkheimer e Adorno a indagar, perplexos: mas falar ainda de "classe"?!
Pois bem, era tudo sobre o que nós gostávamos de falar. Recordo-me -se o leitor permitir que eu introduza indevidamente parte da minha biografia nas excursões biobibliográficas de Dahrendorf- que no final da década de 50 (já então...) coube a Alain Touraine dizer a mim e a alguns outros, na época jovens professores de Sociologia da Universidade de São Paulo, sobre nossas análises quanto à formação da sociedade de classes -sobre o proletariado, mais especificamente- em São Paulo: "Mas vocês não percebem que o Brasil não está na Europa do século passado?".
Mas, voltando ao tema, nosso autor, bom conhecedor da "sociedade industrial", de seus conflitos e das classes, reacende em nosso espírito a chama das perguntas básicas sobre a "moral", o sentido das revoluções e o significado da sociedade civil.
Não por acaso, começa com Karl Popper. Falar de Popper para mim, no auge do meu sociologismo, parecia ser desconversar: como se pode falar de sociedade aberta (mobilidade social, liberdade, democracia, mercado) sem antes desmistificar a exploração de classes?
Aberta -e nem tão valorizado assim seria o conceito- só a sociedade do futuro, do fim da história, não de Fukuyama, mas de Hegel, depois de "A Revolução".
E não é que Dahrendorf retoma a questão moral, transforma as revoluções em "resoluções" e ainda insiste na sociedade civil como conceito não só organizatório, mas valorativo?
E ainda por cima junta tudo isso no título do livro em inglês, "After 1989"! E tinha que juntar mesmo. A queda do muro de Berlim, se já encontrou muitos de nós de cabeça aberta, levou vários outros intelectuais, não a "renegarem" suas biografias intelectuais, mas a reverem-nas, a completarem-nas, e espero, aperfeiçoarem-nas.
Depois da grande desilusão, ao invés de amargor, deve seguir-se a retomada do caminho. E, neste ponto, Dahrendorf ilumina a passagem.
Não é só Popper. Repensa Locke, vai às raízes da cidadania, da liberdade como construção civilizatória, relê os filósofos morais, refaz o percurso dos tão queridos fundadores da London School of Economics, faz contraponto com Max Weber (este, sim, parcialmente aceito por muitos de nós desde sempre) e, o que é principal, faz de seu percurso intelectual uma continuada "análise social".
Se há algo que me fascina neste livro é o diálogo implícito entre as raízes do pensamento sociológico, as indagações transcendentais sobre o conteúdo moral das relações sociais e a lição prática da história, grande ou pequena.
Mais ainda, com toda a justa valorização da sociedade civil (*) como pátria da cidadania, da liberdade construída como condição de realização humana e até mesmo com a insistência kantiana na idéia de "sociedade civil universal" (de grande contemporaneidade), nosso autor está buscando, o tempo todo, o "ethos", o valor moral capaz de promover a coesão tanto da sociedade aberta como da "grande sociedade" das multinacionais, da informática e da globalização. Ao lado disso, como bom sociólogo, redescobre e redesenha a "sociedade", que não é só o aglomerado de indivíduos ou de famílias.
Não por acaso, em um dos capítulos aparece Margareth Thatcher desdenhando a sociedade, "essa coisa", para que, em outro, apareça Dahrendorf, taxativo, respondendo que "essa coisa", a sociedade, existe.
Mas a existência não valida. Daí a pergunta constante: qual é a "boa" sociedade? Se no plano genérico a resposta talvez seja fácil -bastaria enfatizar a mescla entre Popper e T. H. Marshall, com um senso de responsabilidade moral (que não poderia excluir os intelectuais, como se verá no capítulo a respeito)-, historicamente ela é bem mais complexa.
Daí várias "démarches": sobre os fatores de mudança e revolução, o papel das religiões como forma de coesão, seus riscos quanto aos fundamentalismos, além dos fundamentalismos nacionalistas, sobre a igualdade nas oportunidades, sobre o exercício das "liberdades negativas", mais do que das positivas, que podem levar ao arbítrio, sobre a valorização da excelência etc.
Eu não sei se, antes de juntar os temas de tão diversas conferências, em geral feitas por ocasião do recebimento de honrarias, Ralf Dahrendorf tinha um plano mental de desenvolvê-las como partes de um exercício coordenado de reflexão, capaz de obter unidade de resposta. Provavelmente, não. Mas o resultado de toda uma vida atenta aos fatos do mundo e às angústias da explicação, apascentadas por uma motivação moral, está ao alcance do leitor, que já desfrutará do prazer de percorrer este livro.
Antes de terminar, acrescento uma nota: assisti, em Forli, à cerimônia de outorga do grau de doutor "honoris causa" concedido pela Universidade de Bolonha a sir Ralf, como seus colegas o chamavam no grupo de pesquisas sobre questões da democracia, do qual fiz parte naquela Universidade. Nesse caso, ao prazer da leitura substituiu-se o gosto de ouvir alguém que, alemão de nascimento e inglês por adoção, aprendeu com seus novos concidadãos a arte de ler, dando a sensação de estar falando e sempre com encantamento.
Novembro de 1997
Fernando Henrique Cardoso

(*) Em um dos capítulos deste livro, comenta Dahrendorf o pouco uso da noção de cidadão e de sociedade civil no mundo inglês. Contrasta com a redescoberta da sociedade civil como conceito afirmativo no Leste Europeu, depois da Glasnost e de 1989. Curiosamente (ou melhor, compreensivelmente) a esquerda brasileira -com este prefaciador incluído- encontrou nesses mesmos conceitos a explicação conceitual para a luta contra o estado autoritário, revalorizando-se a democracia, e fazendo, cada um de nós, nosso caminho de Damasco.

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