São Paulo, domingo, 16 de novembro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Pacote divide país entre os que 'têm' e os que 'não-têm'

DAVID DREW ZINGG
COLUNISTA DA FOLHA

Alô amigão! Como está se segurando aí, hein? Hein?
Aposto um real plugado que você está adorando as superdivertidas medidas fiscais recém-lançadas, certo?
É difícil deixar de se alegrar com o pacote natalino que o Fernandinho nos ofereceu, você não acha?
Finalmente Brasília separou o Brasil em dois grupos sociais claramente definidos -os 10% sortudos que têm como pagar um drinque num bar e o resto de nós.
Tio Dave calcula que de agora em diante nós, os outros 90% carentes, estaremos com sorte se conseguirmos levar à boca um copo do agradável líquido esverdeado e carregado de algas ao qual a Sabesp atribui o nome "água".
Um sujeito que goste de beber não tem mais muita chance neste grande país, a não ser que queira aplicar uma ducha de cachaça e derreter os um ou dois neurônios treinados que o sistema de ensino nacional lhe destinou.
Veja bem, conseguir e pagar por uma bebida decente não ficou mais fácil ultimamente.
Os bebedouros de Sampa andam cobrando preços que visam refletir a glória do título que a cidade se outorgou: "São Paulo, a Capital Gastronômica do Mundo".
A maior parte dos restaurantes e bares chiques desta cidade não duraria uma semana em algum subúrbio barato de Nova York.
Esses curiosos estabelecimentos fabricantes de dinheiro não pensam duas vezes antes de cobrar por um drinque um preço que qualquer tribunal razoável classificaria como "apropriação indébita".
Por exemplo, eles cobram por um copo de vinho tinto o mesmo preço que o supermercado da esquina cobra por uma garrafa inteira do mesmo produto duvidoso.
Então, aqui estamos nós, Joãozinho, na capital gastronômica da nação, apertados entre os garotos-maravilha fiscais -aqueles de espírito brincalhão- e os barões ladrões que dirigem nossos postos de reabastecimento de álcool.
Tio Dave teve o que considera uma idéia brilhante para completar, formal e terminantemente, a divisão do Brasil em dois grupos: os "têm" e os "não-têm".
Tudo que Fernandinho precisaria fazer seria submeter mais um projeto de lei ao Congresso. Nele, o presidente criaria a filiação de carteirinha ao Clube do Cidadão PlatinumPlus, uma nova e instigante organização que oferece benefícios e descontos especiais para os brasileiros de alta classe, que já formam um grupinho seleto.
"Ao se juntar ao clube PlatinumPlus", diria o presidente, "você ingressa num clube exclusivo de brasileiros de elite, muito superiores aos cidadãos de segunda categoria, ou 'cidadãos segundos', como nós os chamamos".
O presidente então explicaria que os felizes 10% que possuem a carteirinha PlatinumPlus foram selecionados para tanto com a ajuda de vários fatores demográficos altamente discriminatórios, tais como beleza, raça, fatores socioeconômicos e "o fato de eu achar ou não o sujeito uma boa pessoa".
O presidente explicaria que os proprietários de carteirinhas PlatinumPlus têm direito a muitos benefícios especiais, tais como a isenção do IR normal, do serviço militar obrigatório e da obrigatoriedade de servirem como jurados.
O simples fato de mostrar o cartão PlatinumPlus a um policial ou juiz isentaria seu dono da obrigação de obedecer às leis comuns. Isso sem falar nos muitos outros benefícios, incluindo as melhores mesas nos restaurantes, a garantia automática dos assentos de janela em todos os vôos da Varig e um vale endossável que isenta seu dono de um crime (até o nível de homicídio culposo, inclusive).
Depois de um ano de filiação ao Clube PlatinumPlus, o sócio também começaria a acumular pontos que valem votos extras nas eleições nacionais e municipais. "Dá até para ganhar até cinco votos adicionais nas próximas eleições", disse um deputado do Estado setentrional de Rooseveltia.
Joachim Estas, um fofinho colecionador de arte de Chácara Rosas, foi um dos primeiros brasileiros a ser convidado para ingressar no clube. "Fiquei realmente impressionado com a pista expressa da marginal Tietê de uso exclusivo dos portadores de cartão PlatinumPlus", disse Estas, acrescentando, entusiasmado: "O campo de golfe fechado que estão construindo só para sócios no local que antes abrigava o estádio do Pacaembu foi um fator de atração, mas o que gostei mais foram os martinis extra-secos Beefeater, gratuitos e sem limite de doses".
O Velho Cidadão Segundo Dave se viu olhando de frente para a realidade nua e crua, feia e pouco convidativa.
Preso entre o pacote do Fernandinho e os hábitos avarentos dos donos de bares e restaurantes de Sampa, ele terá que se satisfazer com uma simples branquinha.

Tradução de Clara Allain

Texto Anterior: Teste sua capacidade de sobreviver ao pacote
Próximo Texto: Encare a crise com pepino e iogurte
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.