São Paulo, domingo, 16 de novembro de 1997
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A busca traiçoeira do "que(m) sou eu"

ALAIN DE BOTTON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em 1571, um nobre francês de 38 anos retirou-se para sua propriedade nos arredores de Bordeaux, para um pequeno estúdio no alto de uma torre com vista para a paisagem rural, e lá começou a escrever um dos livros mais notáveis do mundo. Seu nome era Michel de Montaigne; seu livro, os "Ensaios".
A obra é notável em parte por seu tema, pois Montaigne propôs-se a descobrir e descrever, como ninguém antes tentara, quem ele de fato era. O tema do livro era, portanto, ele mesmo. "Os costumes fizeram do falar de si mesmo um vício, e proíbem-no por ódio à bazófia que em geral o acompanha", escreveu Montaigne, retrucando, por sua vez, que aquilo que descobrisse a seu próprio respeito poderia ser útil para outrem, "pois cada homem contém em si toda a natureza humana". Em termos modernos, Montaigne queria "se encontrar".
Muitos fizeram o mesmo desde então. Encontrar a si mesmo tornou-se uma das grandes aspirações de todo indivíduo pensativo. É também uma das mais traiçoeiras, pois o eu não é um objeto facilmente localizável -foi o que Montaigne logo percebeu, como quando comparou essa procura pelo eu a um cachorro perseguindo o próprio rabo. "Que difícil é perseguir um movimento tão incerto quanto o de nossa mente, penetrar as profundezas opacas de seus recantos internos, agarrar e imobilizar os inúmeros tremores que a agitam." Quanto mais procurava a si mesmo, tanto mais Montaigne percebia a complexidade e a sutileza de seu tema.
Isso ocorre em parte porque estamos sempre mudando ao longo do tempo. Quem eu sou hoje não é idêntico ao que fui ontem nem ao que serei amanhã. Uma questão-chave para os filósofos que se ocupam com a identidade pessoal é a de como o eu de um indivíduo persiste no tempo. Imagine um bebê -Sofia, por exemplo- balbuciando graciosamente em seu carrinho. Agora imagine a mesma Sofia, já velha, sentada num sofá. O senso comum não hesitaria em admitir que se trata de uma mesma "pessoa", mas os filósofos, tipicamente rigorosos, gostariam de dar uma olhada nos fundamentos dessa crença. Por que nós aceitamos que se trata de uma só e mesma pessoa, enquanto eles pensam tão diversamente?
Uma das maneiras de explicar a identidade pessoal consiste em apontar para a continuidade do corpo ao longo do tempo. Um corpo pode mudar (os dedos de Sofia podem se tornar maiores ou mais frágeis), mas ainda assim persistem conexões entre Sofia no instante "X" e Sofia no ponto "Y" que nos asseguram de que se trata da mesma pessoa. Mas uma objeção à teoria física da identidade decorre da observação de que algumas partes do corpo nos parecem mais importantes que outras. Se eu recebesse um diagnóstico de câncer hepático e tivesse que passar por um transplante de fígado, eu receberia a notícia com certa calma -ainda mais se comparada ao susto que eu teria se me dissessem que, por causa de um tumor cerebral e graças a avanços médicos, eu teria que receber um cérebro transplantado.
É esta a objeção levantada por teóricos como Descartes, que enfatizava a importância primordial da mente como fonte de nossa identidade pessoal. Não é porque tenho o mesmo corpo que sou hoje a mesma pessoa que fui ontem; eu poderia perfeitamente trocar de corpo e permanecer o mesmo, contanto que minha mente me acompanhasse no translado. Em suas "Meditações de Filosofia Primeira", Descartes afirmou: "Há uma grande diferença entre minha mente e meu corpo, uma vez que o corpo é por natureza divisível, ao passo que a mente é intrinsecamente indivisível".
Posso perder um dedo e continuar a ser eu mesmo, mas para Descartes não há como dizer o mesmo quando se trata da mente. E, entretanto, poderíamos objetar-lhe que pessoas envolvidas em acidentes de trânsito por vezes perdem parte de suas funções cerebrais por certo lapso de tempo -não conseguem manejar o computador, não sabem como regar o jardim ou esquecem o nome de sua mulher- sem que nos pareça que tenham perdido sua identidade pessoal.
Algumas partes da mente parecem mais importantes que outras. Para o filósofo inglês John Locke, a parte mais importante da mente é a memória. Só ela pode assegurar uma identidade pessoal contínua. João é o mesmo de ontem apenas e tão-somente se for capaz de lembrar das coisas que fez e que viveu. Na teoria de Locke, a mente é como uma série de corredores de revezamento que passam as memórias adiante, e sempre para um corredor da mesma equipe: não tenho contato com aquele eu que, anos atrás, levou uma bronca de um professor, mas a memória dessa experiência, transmitida até mim por uma sequência de "eus", assegura-me de que ainda sou a mesma pessoa.
Mas também aqui é fácil propor críticas: basta pensar em todas as coisas que não lembramos e que não obstante ainda nos pertencem. No romance de Marcel Proust "Em Busca do Tempo Perdido", o narrador por acaso prova um bolinho (uma "madeleine") cujo gosto lhe traz de volta um passado inegavelmente seu, mas até então fora de seu controle consciente -uma situação também examinada por Freud, que mostrou em que medida um passado olvidado pode influenciar nosso comportamento presente.
Parece haver algo de solipsismo na idéia de procurar por "si mesmo", como se o eu fosse um objeto imóvel esperando para ser descoberto por meio da introspecção solitária. O filósofo e psicólogo William James chamou atenção para o grau em que nossa identidade é formada por outras pessoas: são os outros que nos permitem desenvolver um sentimento de identidade, e as pessoas com as quais nos sentimos mais à vontade são aquelas que nos "devolvem" uma imagem adequada de nós mesmos (como James apontou, uma das acusações frequentes numa relação infeliz é a de que estamos sendo "caricaturados"). O argumento de James é na verdade a reiteração de uma observação de Aristóteles: a amizade é essencial para um sentimento firme de identidade -"ninguém gostaria de viver sem amigos, por mais que lhe sobrassem todos os outros bens".
Outra questão polêmica entre os filósofos diz respeito à nossa capacidade de moldar nossa própria identidade. Karl Marx acreditava que nossa identidade pessoal dependia exclusivamente de nossa situação de classe, enquanto Nietzsche sugeria que somos livres para moldar nossas identidades como melhor nos parecesse, tal como um artista dá forma às suas obras.
A injunção "conhece-te a ti mesmo" pode ser o melhor dos conselhos filosóficos; ainda assim, e talvez por sorte, conhecer a si mesmo continua a ser tarefa das mais escorregadias.

Tradução de Samuel Titan Jr.

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