São Paulo, domingo, 16 de novembro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O narciso do Egito

ADRIANO SCHWARTZ
EDITOR-ADJUNTO DO MAIS!

"Almada Negreiros não é um gênio -manifesta-se em não se manifestar." Assim Fernando Pessoa descreveu o artista português em 1913, quando ele tinha apenas 20 anos. Nessa época, Almada já não se manifestava em desenhos, caricaturas, contos, poemas. Aos poucos, ele acrescentaria ao currículo outras não-manifestações: dramaturgo, romancista, coreógrafo, bailarino, ator, editor, agitador cultural, esteta, geômetra e até jogador de futebol.
O juízo de Pessoa, porém, ainda em 1913 seria outro: "Brilhantismo e inteligência, muito e muita". Ao que, dois anos depois, acrescentaria: "Homem de gênio absoluto, uma das grandes sensibilidades da literatura moderna".
É provável que a própria sombra dos tantos em que Pessoa se metamorfoseou faça com que José de Almada Negreiros (1893-1970) seja ainda um tanto desconhecido no Brasil fora de alguns poucos círculos.
Com o lançamento nesta semana de sua "Obra Completa" (1.124 págs., R$ 95,00, organização de Alexei Bueno e prefácio do crítico português José Augusto França) pela Nova Aguilar e a inauguração de uma exposição no Museu da República, no Rio de Janeiro (leia texto à pág. 5-5), o maior dos problemas -o acesso difícil- está solucionado. Com isso talvez se perceba que, paradoxalmente, a imagem de Fernando Pessoa que mais facilmente vem à cabeça da maioria das pessoas é o retrato do autor de "Mensagem" que Almada Negreiros pintou e repintou (veja à pág. 5-7).
A geração de "Orpheu"
Almada é, ao lado de Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, um dos autores presentes no primeiro número da revista "Orpheu", em 1915, com uma série de pequenos poemas em prosa, "Frisos".
Fundamental para a compreensão do modernismo em Portugal, a revista teve apenas três números, dos quais apenas dois foram efetivamente publicados. O terceiro, após a repercussão bombástica do anterior -que trazia a "Ode Marítima", do heterônimo de Pessoa Álvaro de Campos, e a "Manicure", de Sá-Carneiro-, não chegou a ser lançado.
Dedicado a Álvaro de Campos, o poema "A Cena do Ódio" teria aparecido nesta terceira edição e viria com a seguinte apresentação: "De José Almada Negreiros, poeta sensacionista e Narciso do Egito".
Nervosa, raivosa, acelerada, a obra foi escrita em 1915 -período de turbulência política em Portugal- e publicada integralmente pela primeira vez apenas em 1958. Trata-se de um poema longo, mas o início já dá idéia de seu tom geral:
"Ergo-Me Pederasta apupado d'imbecis/ Divinizo-Me Meretriz, ex-líbris do Pecado, e odeio tudo o que não Me é por Me rirem o Eu!/ Satanizo-Me Tara na Vara de Moisés!/ O castigo das serpentes é-Me riso nos dentes,/ Inferno a arder o meu cantar!...".
Escrito em Paris em 1919, outro poema interessante -que faz um curioso contraponto com "Tabacaria", de Álvaro de Campos, é "Os Ingleses Fumam Cachimbo": "Allons enfants de la Patrie!/ Seeing Paris,/ Os ingleses fumam cachimbo!/ -Fumam de dia,/ Fumam de noite-/ L'homme à la pipe: englishman!// Há cachimbos grande,/ Cachimbos pequenos,/ Cachimbos solteiros,/ Cachimbos casados,/ Cachimbos de ópios,/ Cachimbos de barro!...".
Com o passar dos anos, a produção literária de Almada foi se afastando dos vários "ismos" por que foi bombardeada durante a juventude (futurismo, sensacionismo, interseccionismo etc.), mas manteve -como apontam, a partir de perspectivas distintas, os ensaístas portugueses Eduardo Lourenço e E.M. de Melo e Castro em artigos escritos especialmente para o Mais! (leia às págs. 5-5 e 5-6)- uma característica básica: a visualidade. Como diz Lourenço: "Na poesia ou ficção, Almada permanece um visual. Concebe seus personagens com a mesma nitidez estilizada, sintética, que caracteriza seus desenhos".
Foi sempre, como se autodenominava, um "desenhador".
Imagens e palavras
Ao contrário de Sá-Carneiro e Pessoa, que morreram cedo (26 e 47 anos), Almada viveu consideravelmente: nasceu em 1893, na Ilha de São Tomé e Príncipe (costa da África), onde o pai, um funcionário público, trabalhava, e morreu em 1970, em Lisboa.
Com pouco mais de dois anos, perdeu a mãe, que morreu após um parto malsucedido. Passou grande parte da infância e da adolescência em Paris, Coimbra e Lisboa. Ou seja, assim como Pessoa -que foi criado na África do Sul- e Sá-Carneiro -que morou (e se suicidou) em Paris-, também teve contatos aprofundados com um outro ambiente cultural.
Em Lisboa, onde se fixou no início dos anos 10, começou a publicar seus desenhos. Já em 1913 (mesmo ano em que conhece Pessoa) teve sua primeira exposição individual.
Dois anos depois fez o "Manifesto Anti-Dantas", um ataque violento ao escritor português Júlio Dantas (1876-1962), espécie de representante do "establishment" literário português:
"BASTA! PUM! BASTA!
Uma geração que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi! É um coio d'indigentes, d'indignos e de cegos! É uma resma de charlatões e de vendidos, e só pode parir abaixo de zero! Abaixo a geração! Morra o Dantas, morra! Pim!".
Foi o primeiro de uma série de manifestos e conferências sobre os mais variados assuntos que Almada faria na década seguinte: desde alguns panfletos sobre o futurismo até um ensaio sobre Walt Disney e o filme -que ele havia adorado- "Branca de Neve e os Sete Anões".
Em 1925 escreveu o seu único romance, o romance de formação "Nome de Guerra", que -apesar de levar 13 anos para ser publicado- talvez seja a solitária obra de prosa longa relevante dos primeiros anos do modernismo português.
É autor de mais de dez peças de teatro, dentre as quais destaca-se "Deseja-se Mulher", que é, como diz José-Augusto França em seu prefácio, "na história do teatro português, um texto único, bem estruturado para a cena, a primeira peça no quadro do 'modernismo', e, tal como 'Nome de Guerra' o foi para o romance, a melhor de todas".
Além dos retratos de Pessoa, teve uma extensa produção como artista plástico, tendo feito, inclusive, obras para locais públicos de Portugal, como, por exemplo, os afrescos da Gare Marítima de Alcântara ou os vitrais da Igreja de Nossa Senhora de Fátima.
Almada se casou em 1934, com a pintora Sarah Affonso. Teve um filho, a quem deu o seu nome, e uma filha, Ana Paula de Almada Negreiros, que já morreu. O filho, arquiteto que dividiu por muitos anos um ateliê com o pai, estará no Brasil para o lançamento da "Obra Completa".
Com este "filósofo", Almada teve um último vínculo especial. Ao morrer, no dia 15 de junho de 1970, ele estava no mesmo hospital em que o autor de "Lisbon Revisited" havia morrido 35 anos antes. Estava, aliás, no mesmo quarto.

Texto Anterior: Coluna Joyce Pascowitch
Próximo Texto: A CENA DO ÓDIO
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.