São Paulo, domingo, 16 de novembro de 1997
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'Você Decide': vai querer frango, iogurte ou dentadura?

FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR-ADJUNTO DE OPINIÃO

Esbanjando aquela felicidade dos tolos, o apresentador sorri e pergunta: "Welerson, você quer trocar um lindo BMW zerinho por um par de meias com chulé?".
O pequeno Welerson, mais ou menos 12 anos, está confinado dentro de uma cabine de vidro que o impede de ouvir a pergunta. Diante de um auditório que exala ansiedade e sadismo, com um fone de ouvido que o torna um completo pateta (como se a situação toda já não o fosse), Welerson respira fundo e responde: "Siiiiiiiiiiim!!!".
O apresentador contém a gargalhada, anda pelo palco e, excitado, insiste na pergunta: "Você tem certeza Welerson, tem certeza de que quer trocar esse carrão, esse BMW zerinho por um par fedorento de meias? Quer Welerson?".
Com a expressão apavorada de quem vai decidir a vida num único lance, Welerson confirma: "Siiiiiiiiiiiim!!!!".
"Ah, ah, ah, aaiiii, Welerson, você acaba de trocar um BMW zerinho por esse par de meias sujas", diverte-se finalmente o apresentador, retirando o pequeno derrotado de seu aquário.
A cena descrita acima é inventada, mas constrangimentos como esse se repetem todos os domingos, quando os welersons se submetem à lógica da humilhação de um conhecido programa. Que um de seus quadros leve o nome de "Topa Tudo por Dinheiro" é uma das muitas ironias involuntárias da TV. Ali as pessoas de fato "topam" tudo. Quantas camadas superpostas de barbárie foram necessárias para que coisas assim se tornassem socialmente aceitáveis?
A chamada "participação popular" na TV é sempre um sinal de tragédia. De uns tempos para cá, essa tragédia se diversificou, assumiu novas modalidades, sobretudo a partir da "descoberta" da TV interativa, outra estultice. A Globo, com exceção dos domingos, quando todo mundo baixa a guarda e exorbita, tem procurado evitar o lixo popularesco do SBT, mas acabou cedendo a ele quando criou o quixotesco "Você Decide".
O programa é medonho. Transpira um clima mexicano e lembra muito a boçalidade das antigas fotonovelas. A pretexto de ser "democrático", persegue um didatismo chinfrim e tão sentimentalóide quanto for necessário para envolver o público. A rigor, nem mereceria comentário, não fosse uma pequena particularidade introduzida este ano: o espectador agora pode escolher um entre três finais.
Será um exagero dizer que o programa, no seu novo formato, aderiu à era tucana? Sim, tudo ficou mais "sofisticado", não se trata mais de escolher entre o sim e o não, o bem e o mal, o certo e o errado, o preto ou o branco -agora a realidade exige sutilezas, matizes, ponderações, camadas de complexidade. É como se o povo estivesse sendo convidado a se exercitar pedagogicamente nesse mundo que solicita um passo além da esquerda burra ou da direita predatória.
É claro que tudo isso é uma grande ilusão. As opções que se colocam diante do público são falsamente sofisticadas e a escolha entre uma ou outra obedece a um impulso cego e massificado que está aquém de qualquer ato reflexivo.
Pois bem. Agora que o Real dá sinais de que está despencando ladeira abaixo, Tony Ramos poderia perguntar à intelligentsia tucana: "Pacote fiscal, juros na estratosfera ou câmbio desvalorizado? Sim, porque aqui no nosso país, vocês decidem". Como, ao que parece, a cilada que criou a fantasia da moeda forte já está armada e não há muito mais o que fazer a não ser rezar e brincar de aprovar reformas no Congresso, ao povo poderia ser feita a seguinte questão: "Você decide: frango, iogurte ou dentadura?". O título desse episódio? Que tal "Jesus não tem dentes no país dos banguelas"?

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