São Paulo, quinta-feira, 20 de novembro de 1997
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Ação afirmativa, uma necessidade

HELIO SANTOS

O mês de novembro, há muitos anos, vem sendo a época em que o movimento negro brasileiro procura enfatizar o debate a respeito dos direitos de cidadania dos afrodescendentes no país.
Atualmente, a sociedade como um todo aderiu definitivamente a essa idéia, que busca homenagear Zumbi, morto em combate em 1695 no Quilombo dos Palmares, no local onde está hoje a cidade de União dos Palmares, no atual Estado de Alagoas.
Essa movimentação teve duplo motivo. Inicialmente, buscou-se desmascarar o dia 13 de maio, pela incapacidade da Abolição de trazer no seu rastro a cidadania. Depois, procurou-se resgatar e reescrever a história da escravidão no Brasil, que poderia denominar-se "a história da luta contra a escravidão", no dizer do senador e militante negro Abdias do Nascimento, referência maior para todos nós.
É inegável: o movimento negro alcançou plenamente seu duplo objetivo. Hoje, a historiografia oficial não pode mais apenas contar histórias ou servir de referência para muitos, como um ex-ministro da Justiça que se afiançava nela para dizer que "o relacionamento entre escravos e senhores era de profundo afeto".
Nesta página, nesta mesma data, em 1984, assinamos um artigo chamado "Zumbi dos Palmares: herói nacional". Naquele tempo, tal afirmação era uma mera especulação. Recebemos do falecido professor Florestan Fernandes, um aliado de sempre, incentivo para que a idéia fosse em frente.
No ano passado, neste dia, o nome de Zumbi foi inscrito no panteão dos heróis, do qual já constava o nome de outro mártir -Tiradentes- que pagara com a vida o sonho de liberdade.
O reconhecimento histórico não é apenas uma forma de valorizar a participação negra na construção da democracia no país -o que, sem dúvida, é muito importante. Para a estratégia de quem busca a valorização plena dos negros, tal reconhecimento, além de incentivar nossa auto-estima, tem uma meta crucial a ser atingida: adubar o árido terreno da cidadania brasileira.
O Brasil está inconcluso e se debate nesse estado há mais de um século, sem buscar extirpar a raiz que produz e mantém quase intocada nossa assimetria. Economistas de plantão, teóricos da política brasileira e homens da política real raramente reconhecem, como Joaquim Nabuco, que, ao não erradicar os efeitos do escravismo, o país fortaleceu o processo de exclusão social.
Ora, o Brasil foi um dos países que mais cresceram neste século. No entanto, a despeito de uma riqueza inegável, persistimos na rabeira do ranking mundial de distribuição de renda. Eis por que se diz que aqui temos uma pobreza cristalizada, que resiste bravamente ao enriquecimento geral.
A aridez no campo da cidadania não será invertida com políticas universalistas (tão ao gosto dos mais diferentes discursos), uma vez que, na "terra brasilis", a subcidadania tem cor.
O movimento negro contemporâneo sugere e quer discutir com a sociedade -especialmente com empresários, governo, lideranças políticas, educadores e profissionais da mídia- a importância de iniciar já experiências de implementação de políticas específicas para a população negra.
Quando propomos esse caminho -a ação afirmativa-, estamos querendo dizer o seguinte: a situação da população negra pode ser vista como um problema, sim, mas é, ao mesmo tempo, solução importante para as inúmeras dificuldades reais que atravancam a decolagem do país rumo a uma modernidade que tenha como cimento de sua construção a cidadania.
Não serve ao país uma "modernidade" que investe cada vez mais na chamada "segurança privada", em vez de criar escolas de excelência para os excluídos de sempre.
Para compreendermos a cidadania em sua totalidade, devemos observá-la em seus múltiplos componentes. Além dos aspectos psicológicos, como a auto-estima e o reconhecimento do valor das pessoas, não se deve perder de vista a elevação do padrão de vida. Isso só pode ocorrer de maneira efetiva com a existência de uma sociedade em que as oportunidades sejam, de fato, iguais.
O cartorialismo não é uma característica da cultura nacional isenta de análise sob o enfoque racial. A crise atual exige remédios de conjuntura.
O caminho certo do Brasil para resolver seus dilemas estruturais passa -não adianta tentar fazer atalhos- pela absorção efetiva do potencial da população negra. É uma capacidade ociosa impregnada de criatividade, energia, sabedoria e amor por este país que os negros ajudaram a edificar. O signo dessa senda é singelo: oportunidades iguais -já- nos campos da educação e do trabalho.

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