São Paulo, sexta-feira, 21 de novembro de 1997
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Do frango que decidiu a campanha eleitoral

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Foi uma campanha estranha: de um lado, havia o incipiente carisma do candidato, ainda não reconhecido nacionalmente, mas credenciado pelo seu governo em Minas Gerais e pela sua passagem na Prefeitura de Belo Horizonte. O nome Kubitschek era complicado de pronunciar, custou a ser assimilado pela fonética eleitoral. Se houvesse um técnico de marketing na época, ou gente entendida em numerologia, provavelmente teria sugerido uma troca.
O problema da campanha, sua dramaticidade, era o que hoje se diria o "contexto". O candidato que trazia condições de vitória era considerado pelo governo de então, e pela maioria da imprensa, o "herdeiro do mar de lama" que causara o suicídio de Getúlio Vargas. O fantasma do suicida pairou durante todos os meses de campanha. Paira ainda hoje, mas em outro sentido e com outra finalidade.
Em 1955, lançados JK e Juarez Távora, entre outros, volta e meia surgia um manifesto de generais, apoiado pelos editoriais da imprensa, exigindo a tal união nacional. Dizia-se que o próprio presidente da República, que era o vice em exercício, escrevia tanto os manifestos como os editoriais -no início de sua vida pública Café Filho havia sido jornalista.
Valia tudo para afastar a candidatura de JK. Na impossibilidade de modificar a Constituição, prorrogando o mandato do presidente e a permanência daquele grupo no poder, a alternativa era eleger à força um candidato "confiável".
A UDN foi sempre a mesma, tanto em 1955 como em 1964. Felizmente para o Brasil, o candidato JK ia em frente. Ele havia dito aos generais que o pressionavam diariamente, ameaçando-o inclusive com processos que o colocariam na prisão: "Deus poupou-me do sentimento do medo".
Em fins de março de 1955, o PSD, que a duras penas continuava fiel à sua candidatura, comprara um velho DC3, prefixo PP-ANY, com capacidade para 16 pessoas, duas camas e duas mesas com máquinas de escrever e outros equipamentos de escritório.
JK visitou mais de 2.500 localidades pelo Brasil afora. O que marcou aquele período eleitoral, paradoxalmente, não foi a campanha que ele fazia para ser presidente da República, mas a campanha que fizeram para que ele não fosse presidente da República. Por isso mesmo, todas as suas antenas estavam ligadas no Rio, onde governo, militares, a UDN e a quase totalidade da imprensa conspiravam para impor um candidato da união nacional.
A mesa estava sendo posta para o general Juarez Távora, que era um dos homens fortes do governo. Chamuscado por ter feito parte do grupo que levara Vargas ao suicídio, Juarez precisou de um boi de piranha, de um candidato de ensaio que preparasse o terreno para que ele fosse convocado como salvador da pátria.
Depois de muitas sondagens, encontrou-se esse boi de piranha na pessoa do governador de Pernambuco, Etelvino Lins. Com a falta de imaginação peculiar aos udenistas, ele contrapunha ao dinâmico Programa de Metas do adversário o binômio "Pão e Vergonha" -versão bastante piorada do binômio "Energia e Transporte", que dera fama nacional ao ex-governador mineiro.
Por falar em pão, JK trouxe para a campanha a experiência adquirida em outras lides eleitorais: durante os deslocamentos, só se alimentava de pão e arroz. Ele sabia que muito candidato era derrotado pela inarredável maionese -servida em nove entre dez refeições de campanha.
Buchada de bode só entraria no cardápio dos candidatos presidenciais muitos anos depois.
Quando Juarez, depois de muitas embrulhadas que afastaram Etelvino, entrou na campanha para valer, também ele fez exigências de mesa: não era um doente imaginário como JK, mas um doente real, sofria de colite ou coisa equivalente.
A equipe avançada que preparava seus comícios levava aos eventuais hospedeiros um menu obrigatório e imexível: frango cozido na água e sal, sem qualquer tempero.
Os testemunhos da época dão conta do estupor, da desolação desses ágapes pós-comícios. Apagadas as luzes do palanque, esvaziada a praça principal, dissolvida a banda Euterpe Musical, que tocara furiosos dobrados, os notáveis se reuniam na casa do prefeito ou do coronel mais importante da região.
Serviam-se viandas suculentas, leitões dourados, perus recheados, bacalhoadas homicidas, feijoadas barrocas... O entusiasmo da turma ia ao auge.
Havia um silêncio de velório quando a dona da casa adentrava a sala de jantar com aquele frango lívido, de carnes pálidas e brochantes. Todos se entreolhavam, sérios, alguns chegavam a perder o apetite. Esse frango derrotou o governo, os militares, a UDN e a imprensa. JK foi eleito.

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