São Paulo, sexta-feira, 21 de novembro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Criar dificuldades para vender facilidades

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

Não fosse o curador de fundações, Carlos Francisco Bandeira Lins, quem é, diríamos que seu artigo "As organizações sociais e o governo" (Folha, 13/11) teria sido inspirado antes pela desídia corporativista do que pela cidadania indignada. Mas seu passado remove quaisquer dúvidas. Todavia, como parece desconhecer a gênese das idéias básicas que resultaram nas OS (organizações sociais) e nos contratos de gestão, retomamos a questão.
Antes, um comentário. É pertinente sua aversão ao uso abusivo de medidas provisórias por um governo que pretende caminhar para a democracia.
O fato é denunciado sistematicamente por renomados juristas de São Paulo, como Goffredo Telles, Konder Comparato, Dalmo Dallari, Bandeira de Mello e tantos outros. Embora não me lembre de manifestação do curador, tenho certeza de que ele deve estar entre os que sempre se puseram publicamente contra essa violência institucional.
Comecemos, porém, com uma pequena correção ao seu texto. Diz ele: "Como se em tempo de fartura, prodigalizam-se aos dirigentes das organizações sociais (inclusive aos membros de seus conselhos) vantagens pecuniárias até hoje sempre obstadas aos administradores de entidades benemerentes".
No caso do conselho, a MP permite remunerar apenas as reuniões com uma ajuda de custo, prática corrente que serve para repor despesas.
Esse é um conselho que se reúne três vezes ao ano. Membros acorrem de diferentes partes do Brasil. Não é um conselho municipal ou de amigos de bairro. Há despesas de hotel, de transporte, há dias de trabalho perdidos. Não há descamisado no Brasil que considere essas migalhas semestrais "pródigas vantagens pecuniárias".
Mas o curador tem uma certa razão. A OS é, de fato, vulnerável. Se um governo corrupto quiser usá-la para cevar cabos eleitorais, poderá fazê-lo, como já se faz com estatais, fundações e outras espécies de organização sem fins lucrativos, ditas benemerentes.
Parlamentares e outros chefetes políticos tentarão usar a nova fórmula, como já fazem profusamente no caso do ensino privado e de hospitais, por meio de fundações e sociedades sem fins lucrativos. Quantas fortunas não foram acumuladas com fundações de ensino, senhor curador de fundações, sem que o poder público pudesse fazer alguma coisa? Mas é certo que a organização social não é inexpugnável.
Então, para que uma nova fórmula? Porque é um pouco melhor. E essa qualidade é revitalizada a cada novo contrato de gestão. Se uma estatal ou uma fundação não realiza seu compromisso, não pode ser dissolvida facilmente.
A razão de ser da organização social está explícita no contrato de gestão. Ao governo, para extingui-la, basta não renová-lo ou interrompê-lo. A aposta está no fato de que é preciso muita coragem política para extinguir uma entidade útil e de qualidade, enquanto basta covardia para deixar viver uma estatal inútil ou uma fundação corrompida.
Logo, aposta-se na crença de que o Executivo e o Legislativo, propulsionados pela opinião pública, vão mais frequentemente privilegiar o que for correto, legítimo, do que a malandragem.
A postura do curador é tradicional na cultura luso-brasileira. Todo réu é culpado até provar sua inocência. As instituições legais são articuladas como se todo administrador fosse ladrão.
Monta-se, assim, uma teia burocrática perversa. Para realizar qualquer coisa, é preciso transgredir. A montanha de leis que têm de ser satisfeitas, ou contornadas, é tal que administrar se torna uma arte na burla da lei, independentemente da boa-fé do administrador. Cada instância de fiscalização criada se torna um nicho de propina.
A vantagem da OS é estabelecer uma dicotomia clara entre o contratante -o poder público-, de um lado, e o contratado -a organização social-, de outro, sem intermediários.
Se é verdade que -como, aliás, alerta o curador- o governo não conseguiu dobrar a burocracia brasiliense e incluiu uma participação própria no conselho de administração das OS, também é inegável que a aritmética do advogado não convence ninguém ao tentar demonstrar que, com 20% a 40%, o governo terá fatalmente a maioria.
A separação entre contratado e contratante, a inexorabilidade da avaliação periódica para renovação de contratos e a ausência de vitaliciedade promovem a eficiência. Ninguém impede a criação de novas OS, que podem competir com as existentes, com os mesmos objetivos, pelos mesmos contratos.
Enfim, entraves institucionais, os custos inconfessáveis de instâncias fiscalizadoras e a burocracia paralisante só serão removidas quando nossa atitude mudar. É fundamental confiar no administrado -mas, depois, cobrar.
Não se pode continuar desconfiando a ponto de paralisar a ação do administrador, criando leis e organismos cartoriais fiscalizados que já nascem parasitários, e depois não punir o infrator.
A preocupação do curador de que só por iniciativa do Executivo agirá o Ministério Público em defesa do patrimônio público é descabida. Será que ele nunca ouviu falar em ação popular?
Ademais, na MP não há nada que impeça o Ministério Público de atuar quando houver indício de crime, como com qualquer outra instituição. Apenas não há curadoria específica. Basta que haja denúncia. Venha de quem vier (mas, ah, e se houvesse uma suculenta curadoriazinha, não seria gostoso?).

Texto Anterior: Mudanças climáticas globais
Próximo Texto: Esclarecimento; Meios e fins; Tudo por dinheiro; Televisão e cultura; De olho nos deputados; Informação crítica; Honestidade partidária; Identidade afro; Queda-de-braço
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.