São Paulo, domingo, 23 de novembro de 1997
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A retórica da mídi

LUÍS NASSIF

A discussão sobre desvalorizações cambiais continua muito presa à retórica dos técnicos. Os defensores a apontam como a solução final para a crise externa; os críticos, como a ante-sala do inferno.
Se o crítico é consultor, que previu enfaticamente a seus clientes que não viriam alterações na política cambial, ele acabará prisioneiro da previsão. Até pode aceitar a mídi posteriormente. Antes, jamais, pois não haveria como se explicar perante o cliente e a opinião pública.
E este é um país em que retificações e mudanças de opinião são consideradas demonstrações de fraqueza -em vez de prova de coragem e inteligência.
Na outra ponta -dos defensores da mídi- ocorre o inverso. Quando propõem a mídi, tratam de minimizar todos os riscos embutidos na proposta. Se a economia degringolar mais tarde, sempre poderão alegar que a proposta era boa, mas foi mal implementada. Não é o deles que está em jogo.
Ciclotimia
Posto isso, é interessante anotar duas verdades que acabam escondidas nesse debate. Primeiro: ninguém, em sã consciência, pode ter certeza sobre os efeitos de uma mídi na economia. Não existe ciência nessa história, mas intuição e sensibilidade e uma boa dose de aposta. Segundo, ambos os lados selecionam os argumentos e exemplos que servem a sua tese e hiperdramatizam as consequências da tese contrária.
Trata-se da chamada "ditadura do especialista" -praticada por outros especialistas, como médicos, psiquiatras etc. Em vez de expor todos os ângulos das várias propostas, cada qual esconde os aspectos negativos da sua proposta, a fim de não permitir ao cidadão comum a liberdade de escolha -cujo pressuposto básico é o direito ao pleno conhecimento.
Argumentos conflitantes
Os adversários da mídi citam o exemplo do México, onde houve desvalorização de 50%, e a consequência foi a volta da inflação e uma enorme recessão.
Em cima dessa hipótese de máxi de 50%, ficam no direito de traçar o próprio rascunho do mapa do inferno. Após a máxi, viria a desorganização da economia, a recessão, a volta da inflação, uma candidatura populista etc. Análise corretíssima se... alguém estivesse propondo uma máxi de 50%. Só que ninguém, em sã consciência, proporia uma mídi superior a 15%; 10% seria de bom tamanho.
Depois, não mencionam que a máxi mexicana foi feita em meio a um profundo tiroteio, onde se misturavam crise política, perdas de reserva e tudo o mais. Nem sequer havia um colchão de liquidez, que só foi providenciado tempos depois, junto ao FMI.
Ninguém, em estado sóbrio, proporia uma mídi antes de baixada a poeira da crise asiática ou em meio a um ataque especulativo contra o real.
De seu lado, os defensores da mídi sustentam que a Itália e mesmo os Estados Unidos desvalorizaram suas moedas, e a inflação continuou sob controle.
Não informam que esses países jamais tiveram tradição de indexação e já eram uma economia plenamente aberta por ocasião das respectivas desvalorizações cambiais.
Fatos
Um outro ponto muito manipulado, nas respectivas retóricas, é sobre o processo de ajuste da economia brasileira. Muitas empresas que já passaram por programas de reestruturação sabem que o primeiro salto costuma ser entusiasmador. Leva-se um tempo para perceber que não basta estar na direção correta. Tem que estar no ritmo adequado. E, em momentos de crise aguda, tudo o que parece rápido, é exasperantemente lento, mesmo porque os adversários também não estão parados.
Do lado dos defensores da mídi, paira sentimento oposto. Joga-se todo o peso do ajuste nas costas da mídi, desconsiderando os aspectos estruturais da economia.
Juiz da história
Os fatos decidirão essa pendenga, mais cedo do que se imagina. Nos próximos meses, além de lutar contra o "custo Brasil", a falta de instrumentos adequados de exportação e o câmbio, os exportadores brasileiros terão que enfrentar produtos asiáticos mais baratos, em função das desvalorizações das respectivas moedas nacionais. Em breve, o mercado americano estará abarrotado de produtos asiáticos.
Tem-se, no fundo, uma aposta política. Se der uma mídi agora, o governo corre o risco de pressões de custo que aumentarão a recessão, um desapontamento geral com o Real e uma fase de tensão para rechaçar os apaches. Mas esse trauma será a dez meses das eleições.
Se não fizer a mídi agora, e as exportações não se recuperarem, a próxima onda de ataque apache será contra o Brasil. Provavelmente às vésperas das eleições de 98.

E-mail: lnassif@uol.com.br

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