São Paulo, domingo, 23 de novembro de 1997
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SENSAÇÃO DE CONTEMPLAÇÃO

LAYMERT GARCIA DOS SANTOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Norman Rosenthal pergunta-se, no catálogo de "Sensation", se Londres tornou-se o imbatível centro de produção e difusão da arte contemporânea, privilégio outrora ostentado por Paris, Nova York e Dusseldorf. É grande a tentação de dizer que sim, tamanho é o vigor com que os "Jovens Artistas Britânicos" trabalham as questões que a arte e a vida estão formulando.
Os organizadores bem poderiam eleger "Sacred", de Jane Simpson, como emblema da mostra. Trata-se de uma indefectível cômoda inglesa, remodelada e pintada de um branco leitoso como só sabe ser a pele das mulheres desse país. A película de gelo que constitui a superfície de seu tampo contrasta com manchas vermelhas que imprimem, no corpo imaculado e lacrado da cômoda, as marcas quentes de uma selvageria praticada não se sabe em que ritual.
Ponto de partida
Há, com certeza, muitas portas possíveis para se entrar nessa exposição e tentar captar o seu espírito. A relação da arte com a vida social e cultural seria uma delas. Mas, se resolvermos tomar a sua razão de ser ao pé da letra, talvez convenha concentrarmo-nos na sensação que ela desperta. Isto é: na sensação que se revela na própria contemplação.
Antes de tudo: a presença de Francis Bacon. Assim como Cézanne foi ponto de partida para a arte moderna, Bacon parece ter aberto uma via cuja riqueza começa a ser explorada: a via da sensação.
Num texto de 1981, Gilles Deleuze já se inspirara na "lógica dos sentidos" desenvolvida por Cézanne para mostrar, nas telas de Bacon, o que chamou de "lógica da sensação". "Há duas maneiras de superar a figuração:", escrevia o filósofo, "rumo à forma abstrata, ou então rumo à Figura. Cézanne a denomina simplesmente: a sensação. A Figura é a forma sensível referida à sensação: ela age imediatamente sobre o sistema nervoso, que é carne. Enquanto a Forma abstrata dirige-se ao cérebro, age por intermédio do cérebro, mais próximo do osso. (...) A sensação é uma face voltada para o sujeito (o sistema nervoso, o movimento vital, 'o instinto', o 'temperamento', todo um vocabulário comum ao Naturalismo e a Cézanne) e uma face voltada para o objeto ('o fato', o lugar, o acontecimento). Ou melhor, ela não tem faces de jeito nenhum, ela é as duas coisas indissoluvelmente, é ser-no-mundo, como dizem os fenomenólogos: ao mesmo tempo eu advenho na sensação e algo ocorre por meio da sensação (...). Eu, espectador, só sinto a sensação entrando no quadro, acedendo à unidade do que faz sentir e do sentido" (1).
Apesar do desejo de pintar a sensação e do temperamento "nervosamente otimista", comuns aos dois pintores, Deleuze vê uma diferença entre a "lógica dos sentidos" atuando nas telas de Cézanne, e a "lógica da sensação", nas de Bacon: enquanto na primeira a sensação se reporta diretamente à potência vital da Natureza, na segunda vincula-se a um movimento vital em ação num mundo artificial e fechado.
Ora, o que vão fazer os Jovens Artistas Britânicos? Seguindo a lição de Bacon, escolheram a via da figura e não da forma, escolheram agir sobre a carne, e não sobre o cérebro; mas, ao mesmo tempo, reataram com Cézanne, pois em seus trabalhos a lógica da sensação pulsa na intersecção entre o mundo da Natureza e o mundo sufocante da Cultura contemporânea. Como é impossível tratar da exposição toda, limitemo-nos, para dar uma idéia, à primeira sala.
Choque visual
Nela encontram-se uma instalação de Damien Hirst, uma escultura de Marc Quinn e quatro telas de Mark Wallinger. Ao centro está o trabalho de Hirst intitulado "A Impossibilidade Física da Morte na Mente de Alguém Vivo": uma grande caixa de aço e vidro dentro da qual paira, numa solução de formol, um tubarão. Nada poderia expressar melhor a definição de Deleuze da obra de arte: um bloco de sensações...
O corpo do tubarão, monstruoso, mas inerte, isolado, enquadrado no seu paralelepípedo de vidro, provoca um choque visual intenso porque é o que não é, e não é o que é. O corpo do animal morto desmente a imagem mental que dele temos e, aturdidos, perdemos o pé. Temos diante de nós um tubarão; mas, dele, só restou a forma, morta, inofensiva; tentamos então rejeitá-la, buscando a vitalidade do animal que o faz existir; só a encontramos, porém, na mente inquieta, em movimento, que começa a perceber que, se o tubarão estivesse efetivamente ali, nós não poderíamos estar, contemplando-o, pois, se estivesse vivo, muito provavelmente nós estaríamos mortos.
Cria-se então um turbilhão de sensações: a figura desmente a imagem que desmente a forma que, por contraste, afirma a figura que afirma a imagem que afirma a forma como não-forma. Buscamos refúgio no título do trabalho para nos segurarmos: mas agora, em vez da sensação perturbadora desprender-se do objeto, irrompe naquele que o contempla. Com efeito, a mente de alguém vivo não pode experimentar fisicamente a morte, pois para fazê-lo precisaria estancar o movimento vital do visitante, transformá-lo num análogo do tubarão morto, portanto num não-humano.
Um sorriso sutil se abre então na mente, indicando a questão-limite formulada pela arte de Hirst: o que vemos inerte, à nossa frente, como o máximo de concretude possível, é pura ilusão, forma sem conteúdo, o congelamento de um movimento vital; por outro lado, como forma, nós mesmos também somos pura ilusão. Que realidade então tem a nossa presença aqui, parados na frente do tubarão? Nossa única realidade possível é a realidade da figura, da forma que é não-forma, e que fomos descobrir na obra de arte de Hirst. Esta promove a fusão do que faz sentir e do sentido; pois, se, por um lado, o bloco de sensações atualiza a potência vital do animal configurando-o "in absentia", por outro, atualiza a potência vital de quem o contempla, levando-o abandonar a forma pela figura.
"Self", de Marc Quinn, que gerou controvérsia quando mostrado pela primeira vez, é uma escultura da cabeça do artista moldada em 4,5 litros de seu sangue (a média de um corpo humano), congelada e colocada num cubo de perspex preso a um refrigerador. Num primeiro impulso, movido por uma sensação mista de curiosidade mórbida e certa repulsa, o visitante aproxima-se do trabalho e decepciona-se, ao vê-lo em sua aparente banalidade formal. Entretanto, do próprio material em que a cabeça é plasmada, sobe um incômodo que nos faz perceber tratar-se de uma máscara mortuária -ao que parece, inspirada pela de William Blake.
O que impressiona, e perturba, é sentir que o material é vivo e morto ao mesmo tempo, vivo porque sangue apenas congelado, morto porque líquido solidificado que não irriga mais essa cabeça, mas, muito ao contrário, se faz pedra precária, cuja existência depende de um dispositivo artificial para não coagular, apodrecer, desmanchar. A sensação de incômodo que se desprende do material contamina a obra como um todo, revelando o "self" de Marc Quinn como uma identidade imutável, viva-morta, viva porque sempre ali, presença continuamente retirada e reinstituída, morta porque totalmente despotencializada e desprovida de movimento.
O "self" do artista, mas também, por decorrência, o de qualquer ser humano, apresenta-se então a quem o vê como "my self", obrigando o visitante a reconhecer o que dentro dele já desponta como forma desvitalizada. A absurda e artificial pretensão do "self" à existência esboça no sujeito um movimento de recusa dessa excrescência.
A questão que se impõe é comum ao artista e ao visitante: como livrar-se dessa forma? Questão que, aliás, será retomada na mesma exposição, algumas salas adiante, com o belíssimo trabalho "Nenhuma Maneira Visível de Escapar". Ali vemos, feita em resina, a "pele" do corpo do artista, que, depois de arrancada, jaz dependurada por uma corda, tal um invólucro inútil.
Quatro telas de Mark Wallinger completam a primeira sala. São quatro cavalos de corrida pintados a óleo em tamanho natural e intitulados "Raça Classe Sexo". A discussão sobre figura e forma é retomada, agora na pintura. O que se vê são puros-sangues em sua bela forma; mas o título dos trabalhos convida a ouvir a pergunta que se insinua: onde está o animal? Raça, classe e sexo são atributos naturais desses cavalos; entretanto, basta enunciá-los e já começamos a notar que tais atributos se desnaturalizam, transformando os bichos em seres absolutamente culturais, desanimalizados. Sentindo que os animais não valem mais por eles mesmos, e sim pela imagem que neles projetamos, o visitante descobre que o valor se cola à forma como uma etiqueta: Wallinger está mostrando como a imagem valoriza a forma por meio de uma projeção que reduz os cavalos a uma aparência, e até mesmo dispensa a sua existência.

Nota:
1. Deleuze, Gilles, "Francis Bacon - Logique de la Sensation", Paris, Ed. de la Différence, 1981, tomo 1, pág. 27.

Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor de "Tempo de Ensaio" (Companhia das Letras), entre outros.

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