São Paulo, sexta-feira, 28 de novembro de 1997
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Duas ou três coisas sobre a 'Aquarela do Brasil'

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Uma comissão de entendidos de vários tamanhos e feitios votou na semana passada uma lista das melhores músicas do Brasil neste século.
Escolhas mais ou menos óbvias, quando se pensa nos melhores livros, nos melhores filmes, nos melhores quadros, há um núcleo irremovível de obras que, gostemos ou não, têm de ser citadas.
"Aquarela do Brasil", de Ary Barroso, ganhou disparado e embora eu não a considere como a melhor produção do autor (ele tem cinco ou seis coisas bem mais consistentes em seu repertório), a escolha foi acertada. São quase 60 anos de sucesso, o que equivale a três gerações admitindo que ela nos exprime. Outras obras incluídas na lista, como "O Bêbado e o Equilibrista", por exemplo, talvez não sejam lembradas daqui a 20 ou 30 anos, trata-se de trabalho intrinsecamente datado.
Li, pasmo, o comentário de que o grande samba de Ary, segundo alguns, fora encomendado pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) da ditadura Vargas. Reles ignorância de quem propala tamanha besteira. Ary nunca teve contato com o governo.
Quando entrou na política (foi vereador no Rio), escolheu a UDN, que era o principal partido de oposição ao Estado Novo. Nunca recebeu nenhuma homenagem nem no primeiro nem no segundo governo de Vargas. Recebeu, essa sim, a Ordem Nacional do Mérito, com Villa-Lobos, depois do suicídio do ex-ditador, durante o governo que se seguiu e que era notoriamente contra Vargas.
Por falar nisso: independentemente de seu gênio, Villa-Lobos foi um beneficiário daquele governo, participava física e artisticamente das grandes manifestações do regime autoritário, inclusive daquele inacreditável "Dia da Raça". Outros intelectuais, como Carlos Drummond de Andrade e Vinicius de Moraes, tiveram cargos e encargos durante a ditadura. Tirante os quatro anos em que recebeu os subsídios de vereador, Ary viveu de seu trabalho como locutor esportivo, animador de auditório e compositor.
Antes de fazer sua aquarela, Ary já era de longe o compositor mais popular do Brasil, citado sempre ao lado do mexicano Agostin Lara e do cubano Ernesto Lecuona. Ao longo dos anos 30, deixou-nos obras-primas que até hoje são clássicas, como "Na Baixa do Sapateiro", "No Tabuleiro da Baiana", "Camisa Amarela", "No Rancho Fundo", "Maria", "Morena Boca de Ouro" -a lista é vasta, o espaço pouco.
Composta no Leme, em 1939, numa noite de chuva, "Aquarela do Brasil" ganhou o mundo como nenhuma outra música, nem mesmo "Garota de Ipanema". Foi e continua sendo gravada pelos principais cantores e instrumentistas, recebeu duas versões sinfônicas, uma de Morton Gould, outra da Orquestra Boston "Pops", num disco de 78 rpm que tinha do outro lado o "Intermezzo", de Prevost.
Atribui-se a Walt Disney a repercussão internacional do nome de Ary -até o fim da vida, costumava dizer que "Brazil" era a melodia mais bonita que havia ouvido- mas foi a Republic Pictures, especializada em filmes B, que escolheu Ary para fazer o score musical de um filme com Tito Guizar, Virgínia Bruce e Edward Ewerett Horton. Neste filme, em que Tito Guizar fazia o papel do próprio Ary, o samba "Rio de Janeiro - Isto é o meu Brasil" foi indicado para o Oscar da Academia de Hollywood daquele ano.
Quando os soldados norte-americanos desembarcaram na Itália e libertaram as cidades das tropas alemãs, levaram dois sucessos para a Europa: "In the Mood" e "Brazil" -há um filme de Renato Castellani, "Sotto il Sole di Roma", mostrando isso. São mais de 50 produções americanas que incluíram a "Aquarela do Brasil" como música incidental ou como número especial. Cito duas: a de Bob Hope, Bing Crosby e Dorothy Lamour ("Road to Rio") e a de Carmen Cavallaro em "Melodia Imortal", com Tyrone Power fazendo o papel do pianista Eddy Duchin -filme e versão que Ary abominava.
Aliás, das versões norte-americanas de sua obra, a única que Ary apreciava era a de "Os Quindins de Iaiá", do desenho "Three Caballeros", de Disney. Resultou num formidável balé, um dos mais longos do cinema mundial, com Aurora Miranda cantando e dançando com o Pato Donald, coro do Bando da Lua e um espetacular arranjo orquestral.
Contudo, a maior consagração de sua música veio da Inglaterra, recentemente, em 1985, com "Brasil, o Filme", dirigido por um dos integrantes do grupo Monty Python (Terry Gilliam). É um filme sem nada de exótico: uma ficção científica ambientada nos anos 40, com a humanidade escravizada pela tecnologia do Estado. A melodia de Ary, em estupendos arranjos executados pela Orquestra Sinfônica de Londres, faz o contraponto humano daquela sociedade submetida pela técnica e manipulada pelo lucro. É talvez a música que mais se ouve do princípio ao fim de um filme, nem mesmo a melodia de Max Steiner para "...E o Vento Levou" é tão tocada no decorrer das quatro horas de projeção.
Ao ser condenado a morrer numa espécie de cadeira elétrica, o personagem rebelde relembra, com a voz presa na garganta, a melodia que não é mais Brasil, mas expressão do homem livre.

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