São Paulo, domingo, 30 de novembro de 1997
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Na aula alucinógena

GILSON SCHWARTZ

DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Se todo grande cientista deve ser meio maluco, então os grandes lógicos estão condenados a uma paixão cega pela verdade. E, mesmo que esse enunciado seja completamente falso, Newton da Costa sempre pareceu combinar em si as duas imagens ao mesmo tempo.
O prédio da matemática da USP ainda tinha cheiro de coisa nova. Era uma das poucas bibliotecas, naquele agitado fim dos anos 70, onde havia salas para estudo em grupo. Os chamados "grupos de estudo" sobre "O Capital", as leituras coletivas das obras de Lênin ou Trotsky aconteciam em outros lugares, com a exigida discrição.
Tinha acontecido não sei que passeata pelas ruas do centro de São Paulo. O combinado era voltar para a Cidade Universitária, contar mortos e feridos numa assembléia, avaliar se seria o caso de fazer greve. Zanzando pela avenida do campus quase inútil, avistei de repente aquele senhor que parecia exportado de 1961 para 1978.
Então era verdade. Andava pela USP o grande lógico brasileiro que arriscava vôos filosóficos sem ser filósofo, sendo mais um engenheiro inquieto que construía e desconstruía sistemas axiomáticos como num faz-de-conta.
Com a petulância de quem levanta uma questão de ordem numa assembléia estudantil, abordei o professor com cabelo à moda reco. Então, havia mesmo um grupo de estudos sobre lógica, discutia-se teoria dos conjuntos? O próprio Newton da Costa confirmou e indicou a sala no Instituto de Matemática e Estatística (IME) onde rolava a tertúlia logicista.
No grupo havia menos de dez pessoas. Aluno de graduação, nos primeiros minutos do primeiro dia ficou claro que eu jamais conseguiria captar uma centelha sequer do que se discutia. Mas o lógico obcecado pela verdade e apaixonado pela construção de sistemas, seu modo quase epiléptico de perseguir os elos dedutivos, sua capacidade de subitamente se interromper e acolher ou manifestar as mais terríveis dúvidas, aquilo beirava uma experiência... mística.
Ou alucinógena. Não podia ser real essa experiência intelectual pura, mas inalcançável, em contraste com o mundo lá fora, a ditadura apodrecendo, as massas nas ruas, o gás lacrimogêneo e as monumentais esperanças das "liberdades democráticas".
Newton da Costa era íntimo dos maiores lógicos do mundo. No meio de uma dedução, rabiscando um sistema axiomático na lousa seminova, ele viajava para o território da filosofia e da ciência. A paixão virava vertigem, suas frases terminavam pelo menos uma oitava acima do normal. O sujeito com pinta de reacionário virava um anjo da especulação desabrida.
Cada vez mais fascinado, mas paralisado, quando fiquei sabendo da existência da lógica paraconsistente e do interesse de Newton pela dialética, já era tarde demais.
Eu já abandonara o círculo de jovens "brilhantes" sobre cujas cabeças Newton da Costa semeava. Menos por, enfim, ser absolutamente despreparado para acompanhar suas preleções ou pela certeza de não pertencer ao conjunto de seus alunos, e mais por saber-me incapacitado para amar a verdade científica com tanta empolgação. Seguir o mestre era aceitar todos esses fatos e fugir, meio maluco, meio apaixonado.

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