São Paulo, domingo, 30 de novembro de 1997
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A filosofia da tolerância

MICHEL PATY
ESPECIAL PARA A FOLHA

Com seu último livro, publicado recentemente pela Discurso Editorial, o filósofo brasileiro Newton da Costa chega a um estágio sintético de sua experiência filosófica na busca da verdade das ciências, sob o título "O Conhecimento Científico".
Esta busca começou muitos anos atrás, pois nos seus primeiros trabalhos científicos no sentido estrito, no campo da matemática e da lógica -tão brilhantes que lhe possibilitaram um reconhecimento internacional imediato e duradouro, por abrir um capítulo novo das ciências formais com a descoberta e a elaboração das lógicas paraconsistentes-, já se encontravam reunidos o enfoque lógico-matemático e a preocupação com o fundamental e o significado, isto é, a preocupação filosófica. Convém assinalar que este volume segue de perto um outro livro do mesmo autor, recém-publicado na França, em tradução, "Logiques Classiques et Non Classiques" (Lógicas Clássicas e Não-Clássicas) pela Masson (Paris, 1997).
Estes dois livros representam a essência do pensamento de Newton da Costa: um sobre a lógica e a filosofia da lógica, o outro sobre a filosofia da ciência. Dois trabalhos originais e fecundos, profundos e sintéticos, redigidos de maneira rigorosa e direta, bem no estilo do autor, cuja personalidade transparece atrás das frases, das expressões vívidas, na sua escrita como na sua fala. Obras, sem dúvida, de um dos cientistas e pensadores mais importantes de nossa época.
No livro "O Conhecimento Científico", Newton da Costa situa, primeiramente, o problema da ciência como conhecimento, indo diretamente aos aspectos para ele essenciais relacionados com o problema da verdade, nas diversas acepções dessa palavra, a questão da estrutura teórica, da axiomatização e a do progresso e da continuidade em ciência, entre outras.
Aplica-se, em seguida, a questionar dois tipos de ciências: as ciências formais (lógica e matemática) e as ciências chamadas "empíricas", que têm a ver com o mundo real, sobretudo, aqui, o mundo da física, cujas teorias são, porém, as mais matematizadas das ciências da natureza. Entre as duas, o autor se estende longamente sobre a questão da verdade, a respeito de cada uma dessas formas de conhecimento científico, desenvolvendo sua noção original de "quase-verdade".
Apoiando-se nessas análises, ele termina com uma discussão esclarecedora sobre a racionalidade científica. Apêndices são oferecidos ao final do livro, e também juntamente com cada capítulo, clarificando ou ampliando colocações feitas no corpo do texto. Traço pouco comum num livro de filosofia, porém revelador do método de trabalho de Newton da Costa, é que a maioria destes comentários ou apêndices são redigidos por discípulos (orientandos de tese de doutorado) ou colaboradores do professor, mostrando como na sua concepção e prática da filosofia o pensamento original não exclui o trabalho coletivo, permitindo aproximações de vários campos, no seio de uma verdadeira escola de pensamento. Esta corrente se estende bem além de São Paulo e do Brasil, na Europa, no Reino Unido e também na França, em particular.
Filosofia científica
A expressão que caracterizaria melhor a procura intelectual de Newton da Costa seria a de filosofia científica, no sentido de um estudo rigoroso de noções consideradas na filosofia da ciência e nas metateorias científicas, na linha aberta desde o início do século por Bertrand Russell, Rudolf Carnap, Hans Reichenbach, seguida depois por Patrick Suppes, Maria Luisia Dalla Chiara e outros, incluindo o próprio autor do livro. Talvez "filosofia exata" pudesse ser uma outra qualificação adequada, reivindicada, por sua vez, por Mario Bunge, porém numa perspectiva mais totalizante.
Não obstante, não há na meta da filosofia de Newton da Costa, diferentemente de Russell, Carnap e Reichenbach, nenhuma intenção de acabar com a metafísica, ou de negar estas ou outras aproximações filosóficas. A tolerância faz parte integrante da sua atitude intelectual, admitindo que no mundo filosófico há lugar para todos, reclamando meramente o rigor do pensamento e afirmando a necessidade de uma pluralidade de enfoques e tendências.
A filosofia, para ele, é uma disciplina, uma maneira de pensar, racional, rigorosa, crítica. A filosofia praticada por Newton da Costa e sua escola tende para o lado da lógica e das ciências formais (matemática) ou formalizadas (como a física teórica ou matemática).
Trata-se em particular de examinar, nestas ciências, o movimento que as leva à axiomatização. É ali que a filosofia científica, enquanto teoria (no sentido formal) da ciência, torna-se capaz "de provar resultados tão precisos e rigorosos como os da matemática ou da física matemática".
Falei de tolerância: aliás, esta se encontra presente no fundamento mesmo do seu sistema, inclusive no momento da formalização do conhecimento, uma vez que a idéia-força de sua concepção da racionalidade científica é a da convivência de teorias ou representações, verificadas e até verdadeiras, cada uma no seu domínio de validade, mas que podem ser contraditórias entre si. Não se há de estranhar tal postura da parte do inventor da lógica paraconsistente, capaz de reconciliar uma certa forma de contradição com exigências lógicas.
Verdade pragmática
O método "filosófico-científico" de Newton da Costa demonstrou já sua fecundidade em assuntos metateóricos. Uma de suas inovações na área da filosofia do conhecimento é o estudo formalizado da noção de "quase-verdade", por ele chamada também "verdade pragmática", que corresponde ao tipo de verdade, em princípio provisória, que os cientistas admitem na prática cotidiana do seu trabalho. De fato, tal noção parece útil para caracterizar o tipo particular de lógica que estrutura os elementos proposicionais considerados no processo mesmo do trabalho científico antes de eles chegarem a uma estabilidade.
O conceito de "quase-verdade", como maneira de designar com precisão lógica a idéia de verdade aproximada vivida pelos cientistas com o pé-no-chão, nos seus caminhos às vezes tateantes, ajuda, parece-me, a balizar certas questões muitas vezes deixadas de lado pela filosofia do conhecimento, como a questão da racionalidade do trabalho científico e da descoberta, reencontrada recentemente também a partir da epistemologia crítica (conceitual).
Esta noção possibilitaria uma análise mais precisa de tal racionalidade, esta mesma sendo considerada, desse ponto de vista, como uma lógica não no sentido clássico, e, sim, num sentido diferente, multidedutiva ou paraconsistente. Porém se a formalização justifica a aproximação epistemológica do processo inventivo, ela não a esgota. Pois em numerosos casos esse processo resulta da vontade do cientista pesquisador de superar uma contradição que parece bloquear o progresso teórico. Nós temos aqui matéria suficiente para debates.

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