São Paulo, domingo, 30 de novembro de 1997
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O embate Arrighi x FHC

FERNANDO HADDAD
ESPECIAL PARA A FOLHA

O leitor brasileiro já conhece o trabalho de Giovanni Arrighi intitulado "O Longo Século 20". O livro foi muito bem recebido entre nós, como, aliás, em todo lugar. No que diz respeito à nossa história, no entanto, suponho que "A Ilusão do Desenvolvimento" desperte um interesse maior. Ainda que seu objeto não seja propriamente o Brasil, creio que esse livro ajude a iluminar nossa condição de nação semiperiférica.
Naquele trabalho seminal, Arrighi aceita a concepção braudeliana de uma economia estruturada em três andares -o da produção material, o do mercado e o das altas finanças- e centra suas análises nesse último, interessado que estava em elucidar as mudanças espaciais no alto comando da economia mundial. Dessa história, nós brasileiros não somos protagonistas. Nesse livro, Arrighi desce também aos andares inferiores, estudando tanto as relações centro-periferia quanto as relações capital-trabalho. Nesses andares, o Brasil ganha uma posição de destaque. Além disso, "A Ilusão do Desenvolvimento" oferece um rico esquema analítico para avaliar objetivamente as pretensões do governo FHC de proporcionar ao país um ciclo de desenvolvimento que nos aproximará do chamado núcleo orgânico da economia mundial.
A sociologia de Arrighi é, por assim dizer, uma sociologia das disjunções. Arrighi, tal como Marx, aborda o processo de acumulação de capital, só que inserido num contexto onde a disputa entre os Estados é tão importante quanto a concorrência entre capitais. Ao fazê-lo, Arrighi percebe que muito daquilo que na teoria marxista permanece logicamente conectado, na verdade, realiza-se historicamente de forma desconexa quando introduzida essa variável de inspiração weberiana. E essas importantes disjunções podem ser observadas nos três andares do esquema de Braudel.
"No andar superior", Arrighi aponta para a disjunção entre as relações de poder no sistema inter-Estados e as relações de liderança econômica no sistema inter-empresas, o que abre a possibilidade de pensar uma dispersão espacial disforme do poder econômico das empresas e do poder militar dos Estados. Segundo Arrighi, isso aconteceu no final do século passado, quando os EUA assumiram a liderança econômica graças a uma prática mista de protecionismo estatal e integração vertical das empresas, permanecendo, não obstante, uma potência militar secundária. Essa disjunção exacerbou o conflito inter-Estados, sendo que a fase de prosperidade que se seguiu (1896-1914) foi o resultado dos gastos militares associados à escalada desse conflito, e a fase depressiva (1914-45) assumiu a forma peculiar de uma competição militar entre os Estados, particularmente Inglaterra e Alemanha, em vez de entre empresas e inter-Estados.
Segue-se daí mais um período de prosperidade (1945-73), caracterizado pela tentativa das empresas dos demais países, particularmente o Japão, de alcançar as vantagens organizacionais das empresas americanas. Quando isso ocorre, o acirramento da competição lança a economia mundial numa nova fase depressiva. Durante a crise econômica mundial dos anos 70-80, contudo, foram as empresas do Leste asiático que a enfrentaram com maior vantagem competitiva, graças a um sistema específico de relações inter-empresas que se irradiou por toda região, inclusive a China: o sistema de subcontratação de múltiplas camadas. A expansão econômica leste-asiática pode significar, segundo Arrighi, a imigração, por meio do Pacífico, do centro geopolítico dos processos de acumulação de capital. Contudo, diferentemente da transição do poder econômico britânico para o americano, a transição atual não se beneficiou de um estado de guerra aberto entre os EUA e a antiga URSS. O Japão financiou os custos da escalada da Segunda Guerra Fria dos anos 80 sem extrair dessa "ajuda" as vantagens auferidas pelos EUA quando financiaram a campanha militar da Inglaterra contra a Alemanha. Desse modo, aquela disjunção entre o poder econômico do sistema inter-empresas e o poder militar do sistema inter-Estados pode estar sendo gestada novamente, com resultados imprevisíveis.
"No andar intermédio", a disjunção é de outra natureza. Aqui, Arrighi explora os efeitos da divisão do trabalho no plano internacional. Segundo ele, é precisamente esse fator que divide o mundo em núcleo orgânico -onde se realizam as atividades "cerebrais"- e periferia -onde se realizam as atividades "neuromusculares". As atividades "cerebrais" são aquelas associadas ao fluxo de inovações que a concorrência intercapitalista enseja. Como se sabe desde Schumpeter, essas atividades de "destruição criativa" proporcionam aos agentes inovadores aqueles ganhos superiores ao lucro médio proporcionado pelas atividades rotineiras "neuromusculares".
Para Arrighi, contudo, do mesmo modo que Schumpeter supôs que as inovações orientadas para o lucro e seus efeitos se agrupam "no tempo", podemos supor que se agrupem "no espaço". O desafio está em explicar por que isso acontece, uma vez que o agrupamento no tempo é produto direto da própria lei da concorrência, enquanto o agrupamento no espaço é uma subversão dessa lei. Aqui entra em cena novamente a hipótese da multiplicidade de jurisdições políticas. Quando empresas de determinada localidade começam a inovar, elas fortalecem indiretamente o poder político da jurisdição na qual operam, que, por sua vez, terá maior liberdade para criar um ambiente jurídico-institucional e de infra-estrutura econômica (externalidades) mais favorável para a atividade inovadora, num processo circular e cumulativo.
O núcleo orgânico goza, assim, de uma riqueza "oligárquica" não-universalizável. Ao contrário, as tendências do processo implicam uma polarização crescente da economia mundial numa zona periférica e numa zona de núcleo orgânico. Os dados, entretanto, revelam a existência de um conjunto de países semiperiféricos que consegue resistir à periferização, embora não acumule forças para superá-la. Esses países, de alguma forma, conseguem isolar as atividades típicas de núcleo orgânico de dentro de suas jurisdições das pressões competitivas mundiais, mas, ao fazê-lo, privam-nas de possíveis economias de escala e daquele ambiente competitivo que favorece o processo de inovação. Dessa forma, os países semiperiféricos industrializam-se sem se desenvolver, crescem, mas apenas para permanecer no mesmo lugar, relativamente aos países do núcleo orgânico.
"No andar inferior", finalmente, Arrighi observa mais uma disjunção. Segundo ele, o marxismo imaginou um cenário no qual o crescente poder social do operariado, derivado da associação resultante do avanço da indústria, e a crescente penúria do operariado, derivada da concorrência entre os operários no mercado de trabalho, criariam uma situação revolucionária. Contudo, para Arrighi, o poder social e a penúria do operariado realmente cresceram conforme as previsões, mas de forma polarizada, com o proletariado em algumas regiões experimentando um aumento de poder social, e o proletariado de outras regiões experimentando um aumento da penúria. Essa disjunção é o elemento principal da explicação da cisão no pensamento marxista entre revisionistas e leninistas. Para Arrighi, se se toma o período 1896-1948, encontram-se evidências que validam tanto as concepções revisionistas quanto as leninistas.
O proletariado de alguns países conseguiu pelos métodos propostos por Bernstein transformar seu crescente poder social em maior bem-estar econômico e maior representação política. O mesmo período conheceu também os maiores sucessos da revolução socialista, levados a cabo por vanguardas revolucionárias que assumiram o controle dos governos de quase metade da Eurásia, cuja legitimidade se assentava no empobrecimento das massas exploradas cada vez mais numerosas. Contudo, se a penúria maciça era a base do movimento revolucionário, depois da tomada do poder ela se tornou um completo embaraço, impondo às camadas dirigentes socialistas a realização de desagradáveis tarefas que a burguesia deposta foi incapaz de cumprir, entre elas, a proteção militar contra agressões estrangeiras, e subordinando os interesses autênticos do proletariado a sua consecução.
Tudo somado, o que se viu foi que, "onde o poder social do proletariado era significativo e crescente, a revolução socialista não teve clientela; e onde a revolução socialista teve clientela, o proletariado industrial não teve poder social". A história dessa disjunção só começa a mudar com a crise sistêmica que teve início nos anos 70. Essa crise, resultante do esgotamento da revolução organizacional norte-americana, dá ensejo a uma corrida ao corte de custos, que acarreta um aumento da penúria do proletariado do núcleo orgânico ao mesmo tempo que provoca uma redistribuição do seu poder social em benefício do proletariado periférico e semiperiférico.
Tais considerações feitas, no que concerne ao Brasil, o que o modelo arrighiano ensina? Se tomarmos as intervenções públicas mais sistematizadas do sociólogo FHC, podemos observar que seu prognóstico otimista do governo FHC assenta-se em três premissas diretamente relacionadas aos três andares estudados. FHC acredita 1) que a economia mundial está entrando em um novo ciclo longo de desenvolvimento econômico; 2) que as economias semiperiféricas não têm o seu destino selado, podendo aproveitar as oportunidades para uma inserção muito vantajosa na economia mundial e diminuir a distância que as separa do núcleo orgânico; 3) que uma inserção desse tipo poderá representar ganhos para todas as camadas sociais, particularmente para os trabalhadores.
O sociólogo Giovanni Arrighi diria o seguinte: 1) embora a fase depressiva do último ciclo econômico esteja parcialmente superada e o mundo esteja em fase de ajustes institucionais importantes, não é absolutamente certo que o ímpeto econômico do Leste asiático seja suficiente para tirar toda economia mundial do presente impasse, e a chamada retomada americana, eu acrescentaria, parece também não possuir tal força; 2) mas, mesmo que a economia mundial entre nos eixos, a lei de ferro que divide o mundo em periferia, semiperiferia e núcleo orgânico continua em pleno vigor. O modelo de Arrighi não exclui a possibilidade de mobilidade ascendente e descendente de países semiperiféricos isoladamente considerados. Contudo o que a experiência do pós-guerra mostra é que os casos de mobilidade são raríssimos, sendo que a expressão "milagre econômico" só cabe para descrever a trajetória japonesa, cuja arrancada está associada à revolução organizacional que introduziu o sistema de subcontratação ou acumulação flexível. Ora, o governo FHC mais copia do que cria, combinando voluntarismo mimético internacional com tom professoral doméstico; 3) por fim, se, por uma conjuntura favorável dos astros, o cálculo presidencial até aqui desse certo, o que o modelo arrighiano sugere é que, ainda assim, na atual conjuntura, isso não representaria uma reversão da tendência do aumento da penúria do proletariado mundial, mesmo dos países economicamente dinamizados pelo processo.
Arrighi ou FHC? Os dois sociólogos são suficientemente inteligentes para saber que seus prognósticos são apostas que podem ser derrotadas pela história. O problema é que um deles é presidente da República e não lhe cabe fazer apostas sem as devidas salvaguardas sociais que, hoje, se resumem a uma coisa: o fortalecimento da democracia. Pessoalmente, não vejo uma única instituição ou princípio, de cuja força depende a vitalidade da democracia, sair revigorados da era FHC, sejam os partidos, a divisão de poderes, os sindicatos, a sociedade civil etc. A não ser que se confunda, como quer o presidente, sociedade civil e mercado (pobre Gramsci!).
P.S. Este artigo é uma versão modificada do prefácio ao livro "A Ilusão do Desenvolvimento", de Giovanni Arrighi, lançado pela Coleção "Zero à Esquerda" da Editora Vozes. Foi escrito em setembro deste ano, portanto, antes do crash das Bolsas, com o intuito de demonstrar a oportunidade da publicação dos ensaios de Arrighi para compreender a atual conjuntura política brasileira. No embate entre FHC x Arrighi, o recente golpe no Plano Real representa, para os otimistas, uma simples vitória por pontos nos primeiros "rounds" do combate, enquanto, para os pessimistas, trata-se de um verdadeiro "knock out". Ninguém no governo, contudo, deixa de reconhecer o abalo que ele provoca nas formulações do sociólogo-presidente. Ele próprio parece reconhecê-lo ao iniciar as articulações em torno de sua possível candidatura à Secretário Geral da ONU. Se, do ponto de vista material, tudo sugere a impossibilidade de chegarmos ao Primeiro Mundo, talvez do ponto de vista simbólico a operação seja possível, desde que se estabeleça a mesma confusão de que Fernando Henrique e o Brasil sejam a mesma coisa.

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