São Paulo, domingo, 30 de novembro de 1997
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As paixões sinceras de Callado

ANA ARRUDA CALLADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Branco, urbano (não conseguia sequer andar descalço), classe dominante, Antonio Callado traiu com determinação e amor suas origens. Dedicou sua obra -que se confunde com sua vida- aos camponeses, aos negros, aos índios, aos revolucionários e às mulheres. Amou a natureza e os prazeres da vida, como amou os despossuídos e injustiçados.
Semanas depois de sua partida, tomei coragem e voltei a Maricá, onde juntos construímos um belo recanto, à beira-mar. Voltei em companhia de seus filhos e de seus netos, meus netos, inclusive Clara, que ele não chegou a conhecer. Lá, cercada de seus entes queridos, tendo à vista o mar onde ele tantas vezes mergulhara com um prazer tão intenso, escrevi, com muita emoção, meu primeiro texto sobre Antonio Callado.
Escrevi então sobre o operário, o quebrador de pedras que ele foi a vida toda, trabalhando sem parar, sem fazer alarde, fingindo que não era bem trabalho o que fazia. Neste texto, que a Nova Fronteira utilizou em parte na orelha da edição comemorativa dos 30 anos de "Quarup", eu falava do espanto que foi, mesmo para mim, depois de mais de 20 anos a seu lado, a descoberta desse trabalho duro e incessante. Antonio parecia tão aristocrata, que, neste aspecto, enganou-nos a todos.
Nos necrológios feitos a seu respeito, essa idéia de homem elegante era sempre associada à de fleumático. A brincadeira de Nelson Rodrigues, dizendo que Antonio Callado era o único inglês da vida real, o único inglês que Londres jamais vira, pegou. Callado seria como Jorge Luis Borges, de quem ele diz, no "Bar Don Juan", que construiu um castelo inglês em Buenos Aires. (Esta imagem, aliás, lhe custou um "pito" do sisudo tradutor argentino, em forma de nota ao texto: "O autor se equivocou; Borges nunca possuiu um castelo".).
Nada mais falso que um Antonio Callado impassível observador do mundo.
A paixão pela liberdade, a primeira delas, o levou a seguir, aos 24 anos, para a Europa em guerra, e a trabalhar no serviço brasileiro da BBC. Essa experiência foi transformada em matéria literária mais de quatro décadas depois, no romance "Memórias de Aldenham House", o último que publicou. Depois de enfrentar bombardeios em Londres, Callado atende a um apelo da Rádio Difusão Francesa e vai trabalhar em Paris, quando os alemães ainda estavam em território francês.
Esta não foi apenas uma paixão de juventude. Em 1968, já romancista consagrado, tendo ocupado cargos como redator-chefe do "Correio da Manhã" e da "Enciclopédia Barsa", editorialista do "Jornal do Brasil", insiste em ir como correspondente ao Vietnã, uma vez que a imprensa brasileira só divulgava a versão norte-americana da guerra. Foi o único jornalista latino-americano, não cubano, a reportar a Guerra do Vietnã a partir de Hanói. Conseguiu visitar pilotos norte-americanos prisioneiros dos vietnamitas e, na volta ao Brasil, entregou à embaixada dos Estados Unidos as primeiras cartas que estes presos conseguiram fazer chegar a suas famílias.
Trouxe de Hanói souvenires feitos com restos de aviões americanos derrubados e a foto que foi capa do livro que reuniu suas reportagens: uma jovem vietnamita, franzina e baixinha, fuzil firme na mão, conduzindo um piloto gigantesco, um americano vitaminadíssimo, que havia aprisionado. Antonio a entrevistou e, no livro, não disfarça seu entusiasmo pela moça. Este livro de reportagem, a que ele deu o título de "Vietnã do Norte - Advertência aos Agressores", dá bem a idéia do desprezo que Callado nutria pela idéia hipócrita de jornalismo imparcial. "Não fui ao Vietnã para descobrir quem tinha razão. Isto eu já sabia. Fui lá para entender como os vietnamitas haviam conseguido, comendo arroz e caldo de peixe, forças para derrotar, em 1954, a potência militar que era a França e, em 1968, levar os americanos à mesa de conferências", disse ele em uma entrevista.
Pelo amor à liberdade, Callado foi preso várias vezes. Em uma delas, foi obrigado a carregar um pôster do Che Guevara que tinha em casa, enquanto o levavam de quartel em quartel. À entrada de um deles, julgou ver na fisionomia de um jovem soldado um ar de triunfante alegria, ao se deparar com o retrato. "Tive a impressão de que ele pensou, por um instante, que eu era o libertador do quartel, com o Che como estandarte, e não um prisioneiro", contava, divertido, depois. O pôster ficou preso com Callado, quando afinal o trancafiaram em uma cela.
Ele amou também a revolução, como consequência lógica de seu apaixonado amor pela liberdade. Arriscou-se pessoalmente por ela e admirou os que por ela morreram. Homenageou Che Guevara em "Bar Don Juan" e o capitão Lamarca em "Reflexos do Baile".
Na volta de sua temporada européia, que durou até 1947, com fome de Brasil, como disse tantas vezes, Callado faz viagens à Amazônia e ao Xingu. E aí surge outra de suas grandes paixões, os índios, que passaram a ser parte fundamental de suas inquietações e, portanto, de sua obra. Em "Esqueleto na Lagoa Verde", de 1953, reportagem-ensaio sobre o desaparecimento do aventureiro Percy Harrison Fawcett, a preocupação com o futuro dos índios -dos poucos índios que sobreviveram no Brasil à duvidosa civilização dos que, também duvidosamente, se denominam brancos- já aparece ao lado do deslumbramento que sempre sentiu ao ter contato direto com eles.
Em 1953, escreve a peça "Frankel", a que assisti, ainda adolescente, no Teatro Duse, fascinada. Sem ter a mínima idéia de quem era o autor. "±'Frankel' surgiu para dramatizar o amor de Camargo pelos índios", explicava ele em texto para a revista da Sbat. O personagem Camargo é um chefe de posto do Serviço de Proteção aos Índios, cujo trabalho, os irmãos Villas Boas à frente, Callado tanto admirava. Quando, em 1958, volta ao Xingu como uma espécie de cicerone do escritor inglês Aldous Huxley, que visita o parque indígena com a mulher, Laura, e a poeta norte-americana Elizabeth Bishop, fica espantado com o desinteresse de Huxley pelos índios. "Ele ficou o tempo todo encantado com as borboletas", comentava.
A história posterior desta paixão, não sua face literária, é mais conhecida. Está em "Quarup", onde o Brasil (uma paixão não correspondida, ou melhor, não resolvida) inteiro é retratado, do suicídio de Getúlio Vargas, que se confunde com os chefes índios homenageados na festa do quarup, à prisão e tortura do padre Nando, após 1964. Na expressão feliz de Frei Betto, ao fazer a entrega do troféu Juca Pato a Callado -eleito o intelectual do ano de 1986-, padre Nando fundou a teologia da libertação avant la lettre. Está em "Expedição Montaigne", onde um jovem índio representa a tragédia da aculturação forçada; e que apresenta a figura fortíssima do pajé Ieropé, que queria fazer o tempo recuar para antes da chegada à tribo camaiurá do naturalista Von den Steinen, isto é, da chegada da maldita cultura branca. E está em "Concerto Carioca", no qual o índio Jaci, hermafrodita, desestabiliza uma família, provocando um ódio mortal em um ex-sertanista, e onde o Jardim Botânico, cenário da maior parte da história, é metáfora da selva e do Brasil -o Jardim Botânico, que ele tanto amou e onde conseguiu reunir as estátuas de Eco e Narciso de Mestre Valentim, as primeiras fundidas no Brasil, depois de intensa campanha; o Jardim onde morei quando menina, sendo meu pai funcionário do Ministério da Agricultura, e que foi meu primeiro quintal no Rio de Janeiro.
O amor aos índios, que ele transformou em matéria romanesca em "Quarup", "Expedição Montaigne" e "Concerto Carioca", era um amor concreto. Vi e vivi um momento de grande beleza quando tomávamos banho no lago Ipavu, da aldeia camaiurá, durante as filmagens de "Kuarup", de Ruy Guerra. Antonio, cercado de meninos índios, brincava com eles dentro d'água, como um avô dedicado. Os meninos fingiam susto, riam alto, nadavam, pulavam dentro da lagoa, e Antonio, incansável, repetia e repetia a mímica do monstro ameaçador, pois os curumins não queriam largá-lo. Nesses dias no Xingu, acampados às margens do Tatuari, pude testemunhar também como os índios mais velhos, desta aldeia e dos uialapiti, que o haviam conhecido anteriormente, vinham de vez em quando para uma prosa, a trocarem informações sobre suas vidas.
Outra paixão, a sede de justiça, que em tantas pessoas não completa aquela de liberdade, acompanhou Callado a vida inteira. Fez com que a idéia da reforma agrária, como um passo básico para o Brasil virar um país de verdade, se tornasse quase obsessão.
Em 1959, vai a Pernambuco -meu Estado natal, a que ele já era ligado emocionalmente- fazer reportagem sobre as Ligas Camponesas. Manifesta sua solidariedade aos trabalhadores do Engenho da Galiléia, que conseguiram sua desapropriação depois de invadi-lo, e divulga ao mundo o trabalho de Francisco Julião organizando as Ligas. Ganha um Prêmio Esso de Reportagem e publica "Os Industriais da Seca e os Galileus de Pernambuco". Em 1963, vai verificar a "revolução sem violência" que o governador Miguel Arraes promovia. Lança "Tempo de Arraes" em 1964, pouco depois do golpe militar que depõe e prende o protagonista de sua história. No mesmo ano lança a peça "Forró no Engenho Cananéia", sobre o drama dos camponeses da zona canavieira de Pernambuco.
Muito tempo depois -ele não era, como vimos, homem de paixões passageiras-, em 1985, vai ao Pontal do Paranapanema visitar acampamentos de sem-terra, a maioria deles desalojados pelas obras da Companhia Energética de São Paulo. Escreve o ensaio "Entre o Deus e a Vasilha", sobre a grilagem de terras na região e a tentativa -frustrada- de assentamento do governo Franco Montoro. Dez anos depois, escreve artigo duro contra a prisão de Diolinda, mulher do líder do MST, José Rainha Jr.
Diolinda poderia introduzir-nos a outra paixão de Callado: as mulheres. Mas tenho que ser muito discreta neste item. O que me ajuda é o fato desta paixão ter uma vertente no seu amor à justiça. Ele não se conformava com a milenar opressão das mulheres pela sociedade patriarcal. Amava as irmãs Brontë, falava de suas vidas tristes como se falasse de primas que ele não podia socorrer ou alegrar. Fez, em "Tempo de Arraes", um belo retrato de Elizabete Teixeira, viúva do líder camponês de Sapé, Pedro Teixeira, assassinado, e que tomou seu lugar. Enfim, condoía-se das mulheres frágeis e amava as fortes, como a guerrilheira que encontrou no Vietnã e Santa Teresa D'Ávila. E criou magníficas mulheres, como Marta, de "Madona de Cedro", Francisca e Sônia, de "Quarup", Laurinha, de "Bar Don Juan", Lucinda e Jupira, de "Sempreviva".
Antonio Callado publicou quatro peças escritas especialmente para atores negros e para denunciar o racismo que ainda hoje dificulta a plena cidadania a esta grande parcela da população brasileira. No livro "A Revolta da Cachaça" -título da última dessas peças- estão "Pedro Mico", de 57, "O Tesouro de Chica da Silva", de 59, "Uma Rede para Iemanjá", de 61, e a "Revolta", de 82, que apresenta diretamente o problema da falta de bons papéis no teatro brasileiro para negros.
Nas muitas vezes em que "Pedro Mico" foi encenada, o ator principal -sucessivamente Milton Morais, Jece Valadão, Paulo Goulart e Armando Bogus- foi pintado de preto. Só no cinema Pedro Mico ganhou uma face negra, como ele tinha, a de Pelé. Para alegria do autor, logo na primeira encenação que teve, a "Revolta", escrita para sua filha Tessy, foi protagonizada por Toni Tornado. Alguma coisa estava melhorando no Brasil, comentou.
A paixão pela música foi outra que Callado passou para sua obra. Está, por exemplo, no conto "Violeta Entre os Felinos", no qual o filho edipiano ouve sem parar a ária "Madre Infelice, Corro a Salvarti", do Trovador. Em "Sempreviva", o sabiá Verdurino tem status de personagem. Antonio cantarolava árias inteiras de óperas, sabia de cor extensas letras de tango, gostava quando pensavam que era parente de Joaquim Antonio Callado, o autor do chorinho "Flor Amorosa". E entrava em estado de profundo arrebatamento ao ouvir "A Truta", de Schubert, ou o "Messias", de Handel.
Evidentemente não é possível, no espaço do que deve ser apenas uma breve rememoração de nosso antecessor, descrever tudo que Antonio Callado amava. Mas não posso deixar de acrescentar a família, desde seu bisavô João Crisóstomo Callado, que já chegou ao Brasil com a medalha da Guerra Peninsular, aqui fundou a família e chegou a marechal (e ganhou uma excelente biografia de Afonso Arinos de Melo Franco, também seu descendente); seu avô materno Antonio Pitanga, o jurista que escreveu sobre índios e defendeu os escravos; seu pai médico, sua mãe professora de surdos-mudos; seus filhos e netos.
Resta uma indagação: como pôde um homem tão apaixonado ser descrito tantas vezes como um fleugmático? A explicação está no fato de que suas paixões, como seu trabalho, eram intensas, mas vividas com contenção. Antonio Callado tinha horror ao espalhafato, à estridência. Ao escrever uma apresentação entusiástica para o livro de Irene Moutinho, "As Irmãs de Caim", destaca o estilo suave da autora, afirmando: "Não há motivo nenhum para que mesmo as tragédias não sejam vividas com bons modos".
Antonio Callado viveu suas paixões com bons modos.

O texto reproduzido acima é uma versão do discurso de posse da jornalista no Pen Club do Brasil, no último dia 19, no Rio. Ela assumiu a cadeira que pertenceu a Antonio Callado. O Pen Club é uma associação internacional de escritores.

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