São Paulo, domingo, 30 de novembro de 1997
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Exibicionismo à brasileira

MICHAEL KEPP
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os brasileiros nunca se cansam de imitar "modismos americanos", entre eles os que dizem respeito ao cultivo da estética corporal. Por isso, a profusão de academias de ginástica e de dietas, que pretendem dar às mulheres a aparência "magra-ossuda" das modelos internacionais. As mulheres brasileiras, porém, recusam-se a copiar as tendências em moda nos EUA que fazem camuflar e dessexualizar o corpo. A moda brasileira, dos shortinhos ultracurtos às minissaias e blusas decotadas, deixa cada vez menos à imaginação.
O melhor testemunho disso é a multidão de nádegas e seios, nem sempre camuflados, que desfila diante de quem quer que ligue a televisão. Essa exuberância estilística representa uma diferença fundamental entre o modo como a mulher brasileira usa seu corpo e a maneira como suas colegas americanas o fazem.
Na sociedade brasileira, mesmo em gerações passadas, o exibicionismo, um tanto mais disfarçado, era principalmente um modo de atrair os homens e seduzi-los, ainda que isso merecesse um certo desprezo da "boa sociedade".
Na década de 60, quando se iniciou uma liberação maior das brasileiras -vide Leila Diniz-, essa atitude tornou-se uma desafiadora exibição de independência e auto-afirmação numa cultura na qual eram restritos -como ainda são- os espaços para que as mulheres exercitem aquelas condições. O exibicionismo mais ousado da geração atual, quer em nome da independência, quer com o objetivo de seduzir, leva à competição, ao criar uma demanda pela atenção do sexo oposto. É o clima competitivo das mulatas no Sambódromo e dos concursos de "dança da garrafa" nos programas de auditório.
As mulheres americanas, em sua maioria produto de uma mistura de puritanismo com feminismo, consideram a pouca roupa, especialmente em mulheres que mexem o corpo "maliciosamente", como uma degradação vulgar perante um público de machos para o qual as mulheres são meros objetos. O argumento delas, bastante razoável, é que o poder que a mulher obtém ao captar a atenção dos homens pelo exibicionismo é tão efêmero quanto o da virgindade.
Numa sociedade em que "beleza é fundamental", a progressão da idade transforma o corpo de tesouro em prisão. A mulher trava a guerra perdida contra a celulite e os efeitos da lei da gravidade sobre os pedaços da mulher que foi, um dia, "um pedaço de mulher".
A maioria das mulheres americanas, sob a forte influência do feminismo do tipo "vitimizadas", fazem um grande esforço para "não" atrair a atenção masculina. Desse modo, não surpreende que essas mulheres só olhem diretamente para um desconhecido ou falem com ele em um único lugar público: o bar de solitários -e, mesmo ali, nem sempre.
Essas mulheres se vestem para trabalhar em cores sombrias, cobrindo seus corpos e escondendo as curvas. Mulheres jovens, na vida profissional, às vezes, cultivam uma aparência ainda mais assexuada, vestindo um terno com gravata e tênis. A adoção dessa estética com foros de moda protetora explica por que uma correspondente do "Washington Post", alguns anos atrás, escreveu que as cariocas "se inclinam à nudez".
As americanas se inclinam mais à conquista do homem, buscando seu respeito e admiração quando procuram superar o desempenho deles no mercado do trabalho. Uma das razões pelas quais as brasileiras se dispõem a usar seus corpos de uma forma sedutora é, talvez, a dificuldade delas em participar desse mercado.
Nos EUA, onde o auto-aprimoramento virou obsessão, quando as mulheres se vestem de moda atraente é, em geral, para melhorar sua imagem perante si próprias. Poucas brasileiras, ao contrário, poderiam dizer honestamente: eu me enfeito para mim mesma. Aliás, essa afirmação não seria muito bem-vinda numa sociedade machista. Às vezes, as brasileiras se enfeitam para os homens, mas outras vezes o importante é a competição com outras mulheres ou a demonstração de status social.
A balcanização do movimento feminista nos Estados Unidos, hoje dividido em múltiplas facções, em lutas ideológica, deu lugar a uma direita feminista que, como é comum no Brasil, vê o corpo como instrumento de sedução e dominação. Camille Paglia é a mais conhecida defensora deste chamado "poder feminista", antagonista do feminismo das "vitimizadas".
Paglia foi muito festejada quando esteve aqui no ano passado. Mas o feminismo dela se apóia num tipo de exercício de poder que é estranho à maioria das mulheres brasileiras. O seus ídolos na mídia -Madonna e Sharon Stone- representam mulheres fatais insaciáveis que usam audácia e um senso de autonomia esmagador -não de sensualidade e exibicionismo- para dominar os homens. É bom lembrar que, antes de ser mãe, a angulosidade do corpo de Madonna, às vezes realçada por porta-seios metálicos, cônicos, era muito mais um modo de repelir do que de atrair.
Na famosa cena de interrogatório policial do filme "Instinto Fatal", a personagem de Sharon Stone, uma mulher que descruza e cruza rapidamente as pernas, deixando ver por um instante mínimo que não usa qualquer roupa de baixo, exerce seu domínio sobre os chocados interrogadores, não pelo que mostra, mas por dar a perceber que ousaria exibir-se, mas não faz. A personagem de Sharon Stone usa o corpo não como um "tesouro", mas com a "tesoura" de um censor.
Outros membros da direita feminista americana que acreditam que a pornografia é parte da liberação têm, também, pouco em comum com a estética exibicionista brasileira. As mulheres brasileiras são dionisíacas, e essas feministas "pró-pornô" são campeãs apolíneas de uma visão do corpo abstrata e fracionada: o corpo é um compêndio de partes isoladas em oposição a um todo curvilíneo.
O modo como brasileiras e americanas usam seus corpos tem a ver com o simbolismo religioso das respectivas culturas. A sensualidade e o exibicionismo pertencem ao Brasil católico, em que o corpo crucificado de Cristo é o indício visual de que ele morreu por nossos pecados, os quais Deus está pronto a perdoar. A repressão sexual da América protestante se traduz numa cruz "vazia", que representa um Deus pronto para castigar.
Essa atitude repressiva também se vê no andar contido e "duro" da mulher americana, que nem remotamente lembra a "ginga" brasileira. Transplantou-se para a América o resultado dos valores morais das igrejas norte-européias, que, no dizer da revolucionária Rosa Luxemburg, fazem as mulheres andarem como os paus que já serviram para açoitá-las.
É claro que o protestantismo não impede que as mulheres americanas contemplem ou usem seus corpos não apenas para despertar a auto-estima, mas também como fontes de prazer sexual. Na verdade, as americanas são cada vez mais exigentes de satisfação sexual. Algumas, no seu peculiar conceito egocêntrico de igualdade, chegam a acusar de ejaculação precoce o homem que tem orgasmo antes delas, mesmo que isso leve muito tempo.
No Brasil, quando uma mulher usa o corpo como isca para "fisgar" um homem, torna-se fonte do prazer sexual dele (não dela). Na sociedade machista, o prazer sexual da mulher é secundário diante do de seu parceiro. A clássica pergunta que o homem faz aqui -"e aí, você gozou?"- serve mais para ver reconhecida a excelência do seu desempenho do que para demonstrar preocupação com o prazer da mulher.
Percebendo e usando seus corpos de modos diametralmente opostos, as mulheres brasileiras e americanas sujeitam-se a excessos. Talvez as americanas, defensivas e reprimidas, devessem reexaminar as coisas para ver se seus principais inimigos são os homens e se rebolar para atrair a atenção é, realmente, vulgar e degradante. Será, por exemplo, que o pélvis frenético de Elvis Presley diminuiu a ele ou à sua música? Será que a dança do ventre é degradante?
E as brasileiras, muito mais amigáveis em relação aos homens, mantendo seu grau de exibicionismo e sedução, talvez se devessem perguntar se estão obtendo o que realmente querem.

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