São Paulo, domingo, 30 de novembro de 1997
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Atentado ao pudor

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Haviam combinado a separação depois de seis anos de vida em comum. O mal fora feito e ambos mereciam uma solução civilizada. O diabo é que estavam de passagens compradas e hotéis reservados para um mês na Europa. Sem segunda intenção, aliás sem intenção alguma, ele jogara a dúvida no ar: "E a viagem?".
Ela olhara tudo em conjunto, olhara para ele e olhara para si mesma. Decidiu na hora: "Primeiro a viagem, depois a gente vê...". Ele ainda ia perguntar "ver o quê?", mas um instinto inesperado obrigou-o a ficar quieto. Se tivesse ficado quieto naqueles seis anos, tudo teria sido diferente.
Era fim de ano, muito calor no Rio, muito frio na Europa. No DC-10 novinho deram-se as mãos, ele tinha medo das decolagens, ela sempre o protegera. Na pasmaceira da noite comprida, tentaram dormir abraçados e quase chegaram às vias de fato, a 10 mil pés de altura, como naquele filme da Sílvia Kristel que fazia escândalo.
Em Roma, no mesmo hotel na Via Veneto, ela entrou no quarto e passou a mão pela parede coberta com aquele papel antigo, crisântemos dourados em fundo escuro, como naquele biombo que Orestes Barbosa cantou num velho sucesso de Sílvio Caldas.
Ela disse em voz baixa o nome de um conto de Scott Fitzgerald, Babilônia revisitada, não era a última vez que viam Paris, era a última vez que viam Roma. Ele fingiu não ter ouvido, não gostava de Scott Fitzgerald, preferia Faulkner.
De repente, era o "capodanno", o colorido réveillon italiano, eles tinham mesa numa tasca do Trastevere, ela colocou um colar de havaiano no pescoço, ele se enfiou num chapéu que parecia um pirulito. Depois, bem, depois bendisseram o fato de Roma parecer uma velha estação ferroviária, mal iluminada. O "carabiniere" os surpreendeu na amurada do rio, pensaram que iam ser presos por atentado ao pudor. O guarda desejou: "Auguri". Bateu continência e foi embora.

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