São Paulo, sexta-feira, 5 de dezembro de 1997
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Sociedade americana depende de 'certo artifício'

GERALD THOMAS
EM NOVA YORK

Semana agitada nos EUA, particularmente em Nova York e, mais particularmente ainda, para o prefeito Rudolph Giuliani, vulgo "Rudy", recém-saído de uma batalha judicial em que o hipócrita perdeu o caso contra a revista "New York", que havia se anunciado como sendo uma das poucas coisas que têm dado certo em NY sem o crédito do "benfeitor Rudy".
A revista não fizera nada de errado, mas Rudy aproveitou o evento pra tentar provar que "não precisa mais de publicidade". A política e a hipocrisia nunca haviam sido insultadas por tamanha cretinice. Depois de algumas trapaças políticas, que causam constrangimento e raiva em muitas das comunidades étnicas de Nova York, Rudy mudou suas convicções publicitárias.
Procurando amenizar a sua imagem, Rudy apareceu como convidado especial do programa humorístico "Saturday Night Live" vestido de mulher. E mais! Tentou se passar por vanguardista, mandando seu escritório de "public relations" contatar artistas plásticos de vanguarda para que "fizessem propostas artísticas" que a cidade incorporaria sob o título "The Living Arts".
Mas o primeiro encontro, que se deu com o artista plástico Christo, foi um fracasso. Rudy confirmou sua caretice, rejeitando a proposta do artista, a de fazer no Central Park o mesmo que fizera com a Pont Neuf, em Paris, e com o Bundestag, em Berlim. Christo embrulharia o parque por dois dias e, com isso, atrairia pra cidade uma mídia mastodôntica.
E ele, o prefeito, seria visto como aquele cara "prafrentex", além de lucrar financeiramente com uma leva descomunal de europeus e japoneses, sempre loucos por um embrulho. Mas, infelizmente, Rudy proibiu o "happening" de Christo, alegando que o "embrulho" causaria um enorme estrago às árvores daquele parque.
Menos de um mês depois, a dez quarteirões do mesmo parque, Rudy era o primeiro numa multidão de cretinos a aplaudir o ritual anual do acender das luzes da árvore de Natal do Rockefeller Center, desafiando uma paranóia instaurada por ele próprio, de que o cidadão de NY deveria evitar grandes multidões, por causa de possíveis ataques de terroristas iraquianos. É um mistério, aliás, que o ritual da árvore ainda atraia tantas pessoas, pois, apesar de aparentar uma inocência perdida, ele é simplesmente macabro.
O evento da árvore não seria tão chocante se não acontecesse no centro de uma sociedade "louca" como NY, que berra pelas coisas mais exóticas e removidas daqui, como a sobrevivência dos morcegos ou dos tubarões, a libertação do Tibete, a independência do Timor, e que chora a cada vez que uma queimada na Amazônia é denunciada pelos jornais.
Os mesmos americanos que assistem com horror às cenas de um adolescente que, numa pequena cidade de Kentucky, dispara tiros letais em seus colegas de colégio aplaudem a morte de uma árvore centenária, pura e simplesmente em nome do adorno, do enfeite de Natal.
A mídia não fala nada sobre isso, nunca. Aqui, tudo é festa, desde a família que "doou" a árvore à NBC (ilegítima dona do evento) e fez questão de passar a serra elétrica na coitada -ao vivo-, para o deleite perverso de milhões de telespectadores, até o cortejo fúnebre que transportou a própria do norte do Estado até Manhattan. Parecia, ironicamente, obra do próprio Christo.
Amarrada, amordaçada e agonizante, a árvore serrada foi içada por guindastes e deitada num caminhão e desceu o rio Hudson de balsa. A imagem parecia sair das páginas de "Gulliver". Ontem, finalmente ereto, o "cadáver" foi iluminado. Como já observara o próprio Christo a respeito dessa contraditória cidade: "Nova York me interessa demais, pois aqui é o lugar da festa, seja ela para celebrar uma invenção, uma inovação comportamental, ou mesmo enterrá-la".
O festival das contradições começa com o "Thanksgiving", um feriado legal, inocente, não fosse o desespero de todo americano em voltar a sua cidade de origem a tempo de degustar um pornográfico peru (cerca de 100 milhões de perus são consumidos nesse feriado, e as companhias farmacêuticas que fabricam os antiácidos e digestivos agradecem a Deus pelos lucros: "Thanksgiving" é a festa da comilança).
Resultado: caos nos aeroportos e estradas engarrafadas. O estresse de sair e chegar a tempo é tão assustador que, quando o indivíduo finalmente chega lá, com horas e horas de atraso, a reunião familiar vira um tumulto, uma verdadeira guerra entre pessoas que não se aguentam, não se toleram mais. O fracasso da "família" não será salvo pela ilusão dessas festas institucionalizadas. Não é à toa que o garoto de Kentucky abriu fogo nesses dias de "blues" que seguem os festejos.
Depois tudo volta ao normal, isto é, tudo e todos se tornam reféns absolutos do próximo festejo, aquele considerado o mais sagrado e espiritual de todos, o Natal. Mais uma vez, 100 milhões de perus enfrentarão a força, e estranhos programas culinários (que poderiam passar, tranquilamente, por pornografia pura) mostrarão homens e mulheres enfiando seus braços quase inteiros nos ânus das pobres aves, ensinando como se faz (e introduz) o "stuffing", o recheio do peru. Mas a mídia também não brinca com essa potencial "pornografia".
Tudo nessas festas depende de um certo ar de hipocrisia. Para não ser muito antipático, chamarei a hipocrisia de "um certo artifício", uma encenação necessária. Desde a estranha maneira "harmônica e pacífica" que assola os Hell's Angels até a barba e barriga postiças de Papai Noel, a pergunta persiste: por que a árvore de Natal do Rockefeller Center quer ser de verdade?
Afinal, esse "certo artifício" é o que move a sociedade americana e que torna tolerável e engraçada a vida nesse país, mestre em militar por uma purificação dos "maus hábitos" (como fumar, por exemplo) e conviver perfeitamente bem com a TV vespertina dos "talk shows", desumanamente politicamente incorreta.
Esses shows exploram o que há de mais grotesco nos seres humanos, desfilam, denigrem e humilham todos aqueles que são considerados "exóticos" pelo gosto médio, como travestis, junkies, gays e adúlteros. Ao mesmo tempo, esse "certo artifício" faz com que o presidente Bill Clinton condecore, pessoalmente, a atriz Ellen DeGeneres, por ter "avançado a luta de liberação das lésbicas nos EUA".
Esse "certo artifício" poderia tornar esse período de festas um pouco menos assustador, unindo o útil ao agradável: Rudolph Giuliani proporia para artistas do calibre do próprio Christo, Oldenburg ou Robert Rauchenberg que criassem uma instalação gloriosa e iluminada, cara e atraente, inovadora e esperta, a cada ano, na frente do Rockefeller Center. Com isso, ele teria o lucro desejado e entraria na história com o mesmo perfil de patifaria, mas com um pouco menos de crueldade.

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